sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

O melhor ângulo

Solidão não enche barriga. E isso é um fato, apesar dos fatos não precisarem ser ditos. Eles só existem, e estão lá e aqui, fatuando. 

Hoje estou só. Não por necessidade, opção, não por nada pessoal, só estou. Só estou só. A solidão é bonita, eu acho. Porque bonita é o adjetivo mais mediano que eu encontro. Não porque sozinho você é você, apesar de que... bem... também. Mas solidão não enche barriga. Então a gente trabalha, gosta outra vez de alguém, estuda. Tudo porque não pode ficar trancado no quarto escrevendo coisas que não rendem, ouvindo coisas que não rendem, remoendo gentes que não rendem. Ficando sozinho. Ou quem sabe porque isso nos enlouqueceria, seja lá o que for enlouquecer. Tipo o protagonista de The Pianist, quem sabe. Enlouquecido de estar sozinho, fugitivo. Mas quando digo fugir algo me parece muito analógico. Fugir de estar só é parecido com estar só. Estranhamente parecido. Como andar em círculos. Como nadar em círculos, talvez, já que não sei nadar. E, sem fôlego, paro, paramos. Estamos sós, sempre estaremos. Uma hora ou outra, atravessando uma rua, tossindo, escrevendo poesia sem quebrar a linha. E é por isso que eu acho que estar só é nosso melhor ângulo. A parte mais verdadeira de nós. De repente, sem querer, assustados: Estaremos sós. Em multidões. Quiçá a solidão aprendesse a encher barriga.

(Acho que isso devia ser um diário, pra eu não passar por louca. Sozinha, louca-sozinha em vez de louca.)

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

O apressar do atraso

E já no acordar lembrei da minha mania de começar os textos com um E, para parecer mais familiar o que vem depois. Para ser só uma adição ao texto que fora escrito até a noite anterior, não uma nova página. Não lembro da gramática do E, embora adição me seja um termo meio que matematicamente familiar. Lembro apenas de acordar como se fosse personagem de livro de romance, meio cafona. Hoje narrei tudo que senti acontecer. Narrei os parágrafos, como começar, onde usar as vírgulas, ainda que de maneira inadequada. E na ressaca de iniciar as frases sem saber como acabarão, quando vi acordei na segunda-feira; Pensando porquê diabos algumas pessoas só conseguem escrever pra falar, ainda que minimamente, de amor. Ainda que com todos os eufemismos que a palavra e o viver requerem, para não falar no sentir. Todo o trajeto da náusea com que acordei, das páginas do livro que li, do almoço que não consegui terminar, do banho mais curto que o desejado, da escolha da pior roupa do armário aliada a um chinelo de dedos, que seria uma vestimenta ruim até para ficar em casa, do caminho para o trabalho na calçada que o dono do prédio resolveu cobrir de piso claro demais e que me cegaria, não fosse o atrasado da hora. Da sincronia dos passos subindo a elevação pequena que vai dar no meu trabalho, os clac clacs de salto da loira do segundo andar comparados ao meu arrastar de chinelos. Do boa tarde cuidadosamente seco, porém sonoro, ao adentrar as salas dos colegas que eu não via desde a sexta-feira. Da falta de paciência com a senhorita que precisa de ar condicionado e sal debaixo da língua porque está com pressão baixa. Pseudo-burguesa, sem o traço doce de ser, ao menos, uma hipocondríaca um pouco interessante. Do subir de escadas arrastado, para trabalhar, ou escrever um texto enquanto se deveria estar trabalhando. Tudo isso renderia uma crônica, um conto, um texto esparso, um monólogo, um livro detalhistamente enjoativo, um filme de pouca bilheteria; mas eu só consigo falar bem das coisas grandes, e essas não rendem nada, porque todos conseguem vê-las de alguma forma. Só consigo falar bem de me repetir com essa náusea que nem ao me deixar me deixa verdadeiramente. Dessa ressaca que as vodcas de ontem não conhecem. Dessa espécie de mordida em punho de camiseta comprida, que agonia tanto e o menino não se cansa de repetir. E eu me assisto ser o que não sou sem estar pertubada. Perturbadazinha que fosse. Nos meus textos que, ninguém, entendo. Falta o confirmar de coincidências, o apressar do atraso, o apreço de, entre uma loucura e outra, terminar sabendo que o próximo fruto da escrita merecerá começar com E, para ser continuação em vez de parágrafo novo.

sábado, 14 de janeiro de 2012

O próprio veneno

Acordei bem a tempo de ouvir o controle remoto dele tocar. Talvez tenha despertado na antecipação do barulhinho estridente que o celular novo, gigante e cheio de tecnologias é capaz de fazer. De relance, vi o golpe em direção ao criado-mudo, que estava depois de mim. Um salto, praticamente ornamental, que terminaria com a tela virada pra ele no lugar exato de um braço esticado meio para cima, longe da minha vista. Coisa estranha. Nada que o meu pescoço generosamente avantajado não desse conta de minimizar, no entanto. Linhas e linhas de mensagem de texto. Um trecho de música do Gessinger? Um poema do García Márquez? Um pedido de desculpas? Eu não sabia. E tinha acabado de despertar, o que dificultava um pouco a concentração, apesar de não diminuir nem um milionésimo da agitação com a cena - curta e relativamente patética.
Devo ter murmurado um "quem é?", embora não tenha certeza de concatenar bem as ideias para um feito de tão grandioso porte. E ele disse: "uma amiga, a avó dela faleceu". E àquela altura eu tive certeza de que não há nada de mais estranho no mundo do que ser acordada com uma notícia de avó de amiga que falece às quatro e quinze da tarde. Principalmente se o número da outra operadora toca menos de dez minutos depois, e ele resolve não atender. Abandono o travesseiro e deito longe da conchinha. Ah, meu temperamento de menina de doze anos! Tão bom relembrá-lo. Franzindo o cenho da maneira mais enigmática possível, arquitetei a vingança que comeria quente.
Temos poucas horas. Beijo-lhe devagar, fecho os olhos como se não soubesse o que me espera, nego-lhe o óbvio e ofereço, cru, o que não sei compreender - só sinto e faço questão de querer. E embora parecesse uma dose pequena de um veneno suficientemente letal e cruel na demora, o que eu destilava aos poucos não era mais do que um ciúme cento e vinte por cento humano.
E como nua de disfarces eu não sei mentir: ciumenta que sou, sincera que sou, pulguenta atrás da orelha que sou e contida que não sou, disparo: "Tu te importas que eu veja a mensagem da tua amiga?" E ele, que torceu o nariz severamente mas fingiu não se importar, mostrou o que na verdade eu não queria ver, mas precisava. Uma mensagem de muitas linhas, que eu não li, e algumas conversas anteriores, que eu li e que apareceram na tela por culpa do avanço tecnológico que é o controle remoto que ele chama de celular. Senti as bochechas quentes e mais coradas do que é costume, naquelas circunstâncias. E às cinco e meia da tarde eu era uma ciumenta orgulhosa e, de certo modo, pragmática.
No final da conversa absurdamente sincera, franca (todos os sinônimos mais!) e polida que deveria acabar em uma briga, que por sua vez deveria acabar em beijos, negações óbvias e oferecimentos crus, estávamos bem pelo que houve e pelo que não houve. E eu não era mais do que uma ciumentinha. Diminutivo mesmo. E o que mais me perturbava, passado todo aquele ataque histérico de mulherzinha, era não ter mais uma hora ou duas pra dormir de conchinha com o cara do controle remoto.