segunda-feira, 15 de julho de 2024

Samba & Freddo

A cena parece trágica, mas para mim é quase paradisíaca: estou de novo sentado num canto do parapeito da sacada do nosso apartamento. A vista compensa muito o medo que já me deu subir aqui. Faço isso há anos. Repetidamente, sempre sem ajuda e sempre com os mesmos cuidados para não me acontecer um acidente letal. Sou magro, por isso acho que não tenho muito problema. Quando o meu coração finalmente desacelera do impulso necessário para a subida e consigo me estabilizar, eu me envaideço por ter conseguido e aproveito para imitar os gestos lânguidos de quem medita - como se fosse fácil, com o coração na boca.
Daqui de cima eu contemplo tudo que posso, o que significa mais de uma dezena de janelas discretas - outras, nem tanto. Não vejo muita variedade (em termos de coisas que me chamem a atenção) fora os hábitos repetidos de quem apaga a luz e dorme, horas depois acorda, abre as cortinas e escova os dentes perambulando pela casa para poder sair apressado e só voltar quando já anoiteceu. Só em ocasiões pontuais e no final de semana é que algumas rotinas deles mudam, como quando assistem a um jogo de futebol (e gritam) ou trazem alguém novo para jantar (e depois às vezes também gritam, mas de jeitos diferentes).
Ainda que em regra só haja quietude e monotonia nesse panorama, sigo subindo aqui em todos os dias da minha existência, às vezes para passar horas a fio, com a graça de um ritual que me evoca quase a mesma sensação dos tempos em que esta vista era desejada (porque quando eu cheguei, pequeno, ainda não alcançava o parapeito) e, depois, em que era tudo que eu tinha.
Hoje faz um pouco de frio e chove, então não vou sair. Vou ficar assistindo deste ângulo aos mesmos suportes de ar condicionado encardidos sobre os quais repousam, há tempos caídos das janelinhas dos banheiros, alguns shampoos e sabonetes - que por sua vez vão sujando e apodrecendo quase sem se decompor, só para provar que o tempo passa e algumas coisas resistem bravamente. Os habitantes do bloco de lá nunca se dão ao trabalho de buscar, porque embora suas mãos alcancem e segurem objetos com bastante ergonomia, sei que para eles poderia ser uma missão suicida. Mais vale comprarem outros Head&Shoulders do que padecerem do risco de ter a head desassociada dos shoulders na queda, rssprsssprss (acostuma, esta é a corruptela que uso para indicar o meu riso). Para o azar deles, não são habilidosos no equilíbrio para os trabalhos em altura como eu.
Talvez por isso, outro dia, uma vizinha enxerida tenha me fotografado e posto o registro no grupo do condomínio. Quase vieram os bombeiros. Xingaram o Sérgio de maluco e irresponsável. Deu o maior bafafá. Eu, porém, não parei de fazê-lo, a despeito das telas que foram instaladas para a tranquilidade geral da nação. Levou dois dias para eu aprender que uma tela e nada é a mesma coisa pra mim. Agora acho que paro aqui um pouco porque gosto de me desafiar e outro pouco por desaforo com aquela maldita. Só que escolho horários estratégicos e tento não ser visto, para não constranger o Sérgio diante dessa gente careta e metida a besta que não entende nada das pequenas loucuras que são exigidas de quem leva a vida trancado nestas caixas rígidas, metros quadrados que se agigantam em ferragem e concreto ao redor, aos quais por sorte foram implantados buracos para escapar que eles chamam de portas, janelas e sacadas.
Ah! E a árvore. Daqui eu vejo bem de perto a árvore que cresceu, imensa e frondosa, rente ao muro, às sacadas e às janelas da frente-norte do nosso bloco. Esse verde do Vizinho deixou a minha vista mais selva e menos de pedra. Modificou e melhorou muito a minha rotina. Veja bem, não é que aqui em casa não tenhamos folhagens, suculentas e cactos, nem é que dê para confundir esse paisagismo do Vizinho com uma obra assinada pelo Burle Marx. Nada disso. É só uma árvore. Não é bonita a ponto de parecer cuidadosamente pensada. Mas essa árvore - que agora se funde à paisagem bem colada às construções - tem pra mim o valor sentimental de mais de uma década. Além de ter sido a chave para a minha liberdade, ela me sinaliza o quanto o tempo passou. Fico nostálgico quando penso que a vi crescer desde que era um raminho ou dois fincados no chão e tinha aspecto de muda. Quer dizer, isso ela ainda é, porque as árvores não falam nem fazem sons sem a ajuda do vento, rssprsssprss.
Cresci também nesse tempo - isso sinto no corpo. Moro nesse mesmo apartamento há todos esses anos. O Sérgio, que mora comigo, acabou de sair para trabalhar. Sei porque ouvi ao longe as chaves dele girarem na fechadura. Meu olfato não é dos melhores, então compenso com os outros sentidos. Não me ressinto muito de que ele não se despeça mais de mim todos os dias e que tenhamos nos tornado um pouco distantes, como aquelas presenças certas e duradoras, feito um móvel da decoração. Tampouco entristeço demais que ele já não converse comigo com frequência. Até porque eu nunca respondo direito. No fim das contas, nunca fomos fisicamente próximos e sei que esta culpa é minha. Eu não gosto tanto assim de contato físico. Acho que no fundo ele entende as minhas necessidades, porque segue provendo tudo o que eu preciso. O entendimento das coisas práticas é o máximo de entendimento que posso almejar de um cara como o Sérgio em relação a mim.
No mais, guardo comigo um pouco dessa tristeza vaga e indefinida de me sentir sempre só, é claro que guardo, mas ele não foi o causador de nada disso. Talvez tenham sido as circunstâncias: ser por tanto tempo o único da minha espécie num raio de muitos metros para cima, para baixo ou para os lados, vivendo trancado nesse apartamento o dia todo, ainda por cima. Mas isso não é desculpa. Eu aposto que o Sérgio, que sai bastante e é tão boêmio, às vezes se sente assim um pouco melancólico também. Sei porque é assim comigo: quando a conheci, a rua até me distraiu, mas não me preencheu. Levando em conta que não temos como suprir nossas carências de todo, visto que somos tão diferentes, sei que Sérgio e eu fazemos o melhor que podemos em termos de companhia um para o outro. Eu me detenho em acreditar que a melancolia seja um sentimento inescapável da condição de se sentir único. Depois de nos separarmos umbilicalmente de nossos pares (a família), esta melancolia (que mescla um pouco da solidão com um pouco da busca inconfessável pela identificação) vem. E fica.
Penso nisso enquanto estou aqui praticamente imóvel, há horas, tentando alcançar a paz de não desejar mais as minhas perigosas expedições, que necessariamente passam pelo terreno do Vizinho, mas vão além. Lembro da primeira vez em que tomei coragem para me lançar do outro extremo da ponta aqui do parapeito para cima do ar condicionado do Sérgio, e depois para cima do muro, e depois para o galho da árvore, e depois fui me firmando pelo tronco até o chão do outro lado da divisória erguida entre os terrenos. Quatro manobras ornamentais, e cada qual podia ter dado muito errado. Só que deram certo. Meu ritmo cardíaco acelerou tanto que, na volta, pensei que não conseguiria subir a árvore de novo para poder fazer o caminho reverso. Com bastante esforço eu subi, e desde então as minhas experiências e receptores se expandiram. Tornei a fazê-lo semanalmente e conheci texturas, lugares e formas da natureza que nunca tinha suspeitado. Descobri as capacidades e as aptidões do meu porte. Virei um rueiro, ávido pela noite, pelos prazeres da carne e pela novidade.
O Sérgio, que é um defensor do prazer, nunca quis me castrar. Nesses anos todos, sempre fingiu que não desconfia das minhas aventuras, exceto pelo dia em que eu cheguei todo lanhado depois de uma briga por um pedaço de peixe. Naquele dia a coisa ficou feia. Feia, fedida e infeccionada. Precisei ficar internado. Achei que ele ia se desfazer de mim quando viu a conta do médico, mas voltei pra casa. É sorte eu estar envelhecendo - já não tenho mais o vigor de antes, o que possivelmente explique eu estar retomando o gosto por apenas me sentar aqui, dia após dia, e simplesmente contemplar (como se aqui não houvesse o perigo ou a vertigem da subida). Foram necessários diversos exercícios pelos telhados, tentativas e erros, mas cheguei à conclusão de que quanto mais eu zanzei por aí e conheci as coisas, mais compreendi que estar aqui, no parapeito desta sacada, é o meu lugar no mundo.
De longe, reflexivo e bem paradinho assim, eu talvez possa parecer um pouco depressivo. Não é verdade. Tenho histórias emocionantes demais, mesmo antes de invadir o terreno do Vizinho, mas principalmente depois, para que aconteça da minha melancolia descambar para uma depressão. Eu me organizo em volta destas minhas memórias efusivas. Boa parte da minha emoção vem dos saltos. Como é natural da formiga atacar o doce, é natural para mim o frio na barriga que dá a altura. Dentro de casa, se acontece de eu cair, eu caio em pé e nunca me machuco. Então sou capturado pelas estantes mais altas que o Sérgio tem, pelos potes sobrepostos acima dos aéreos da cozinha e pela engenharia de cálculo que me demanda compreender ao certo como subirei pelos degraus que vão se formando irregulares dentro desta casa até alcançar o ponto que eu quero para tirar uma soneca. Todas as etapas deste processo têm a força de um desafio.
Às vezes, em cumplicidade a esta minha subversão, o Sérgio muda as plantas de lugar (como na música da Cássia) só para assistir como eu farei para subir de um jeito diferente onde subia antes sempre igual. Isso me manteve ativo e malandro e me deu coragem para sair do conforto do meu parapeito para explorar o terreno do Vizinho, quando finalmente achei que devia. Eu sou forjado na malandragem. E ele sabe. Vive comigo tempo suficiente para entender que quando ponho algo na cabeça, não vou me deter. Nisso até somos parecidos: há um equilíbrio simbiótico de coexistir no mesmo espaço e proporcionar ao outro o básico do lazer e do entretenimento.
Até hoje, nunca me ocorreu fugir. Acho que se tenho espaço para pequenas transgressões inconfessadas, comida boa e água fresca, não tem muito o porquê. Já fui mais de um quilômetro longe do prédio atrás de rabo de saia, sem contar a distância daqui até a árvore, e depois sempre voltei. Geralmente calculo bem o tempo que o Sérgio leva fora e volto antes de ele voltar do trabalho, para não lhe causar preocupações.
Talvez se eu tivesse no meu pedigree qualquer traço de origem espanhola e fugir se pronunciasse huir, com conjugações bonitas e sonoras como huye, eu tivesse mais vontade. Mas eu sou brasileiro. Ultra brasileiro - como o feijão, o jeitinho e o brigadeiro. Eu sou um gato preto, sem raça definida, a quem o Sérgio deu o nome de Samba. Não Simba, como o protagonista do Rei Leão. Samba. Sinto a ginga dessa escolha de vogais desde nascença, enquanto remexo o rabo malemolente, uma pata atrás da outra. Sempre que tenho lábia, sem medo de perder o raciocínio, porque sei que quando eu sentar para miar, elas estarão lá para me socorrer.
Espera. Enquanto eu me distraía lambendo as patas ao contar minha biografia felina, houve um movimento na cena que me é inteiramente novo. Até agitei os bigodes. No apartamento da frente, um andar abaixo do nosso, a Anna (sei que chama Anna porque o Sérgio fica cheio de graça e fúria quando fala dela) está depositando no chão uma caixa de transporte que até reluz de tão nova. Em cima um nome: Freddo. Dentro, algo grande se move cor de laranja em textura de doce de leite. Só me faltava essa.