quarta-feira, 10 de julho de 2024

Cativo [4]

Se tudo explodisse, sei que haveria um brio. Não um brilho, como costuma haver nas explosões. Um brio. Dirias palavras duras na tua voz de veludo, amor, mas o que mais me machucaria é o silêncio que saberias fazer por estar ferido. O tempo que levaria pra tirar as fotos de todos os porta-retratos. Dividir os travesseiros e indenizar as parcelas. Voltar a lavar a louça. Não sei se suporto perder os talheres e a intimidade ao mesmo tempo. Ególatra, também não suporto a ideia de perder o controle da narrativa do fim. Que história contaríamos? Que história eu contaria? Você sempre faz questão de tudo tão explicadinho. Isso me irrita, mas sinto que te devo. Porque se eu explico qualquer coisa você valida, remói em muitas mastigações, e às vezes muda - o que é uma raridade no teu gênero. O problema é que não tenho bem claras, nem pra mim, as respostas e possíveis reivindicações agora. Até porque não posso reivindicar a transmutação de toda a matéria que te constitui. Primeiro (e digo isso levantando um dedo por vez, a começar pelo polegar) porque isso não viria, já que tens o brio, segundo porque muito do que eu amo se perderia no processo, terceiro que, se viesse, não viria sem dor - e a essa altura qualquer dor tua me dói simultânea, porque preciso lidar com ela. As minhas são menos físicas. Nisso parece que profetizei que esse ano eu faria um caminho de volta para as palavras. Só não calculei bem a rota, entende? Até onde isso ia. Não imaginava que elas fossem se agigantar, criar dentes e garras e virariam obstáculos e me devorariam e quase denunciariam assim. Que me mostrariam um espelho para enxergar tão nítido o buraco, o não dito, o oco. Que me tornaria uma inconformada com as regras que eu mesma estabeleci pra seguir. Logo eu, que nunca cogitei achar tão ruim a sério você já ter um plano mais ou menos estruturado para a recuperação de mim, se calhasse de ser: cursos e fodas. Eu sei que me lembraria desse plano de um jeito devastador, reclusa embaixo das cobertas, quando fosse o tempo de ele virar verdade. Que percurso desastroso eu poderia percorrer ferida pela tua superação? E quem me diria de um jeito tão enfático pra parar um pouco de olhar as camadas, porque às vezes as coisas só são, inteiras como são? Tens parecido muito a minha mãe… calma, eu vou explicar, é no melhor sentido que quero dizer, desde criança sinto que posso enlouquecer se ninguém pegar na minha mão às vezes e me disser em seco pra parar com esse frenesi melancólico, quando ele me vem. E nisso você se destaca. Os teus pés, aterrados, já criaram raízes fundas. De modo que, se vem um furacão de incerteza, é a ti que eu posso me agarrar. O tamanho de uma constatação dessa é proporcional ao remorso que eu sinto em saber que posso minguar se não sentir de novo um estímulo-contraste pra ser enxergada além da pele, do drama, das lágrimas, até os ossos. Você é paramédico. Repara em todos os meus comportamentos, mínimos que sejam. Checa os meus sinais vitais. Põe com um pouco de romantismo o meu colar cervical. Firma o ajuste das talas. Esse olhar atento, ainda que tenha um retrogosto de controle, não te faltou nunca. O que eu quero talvez não possa exigir: você só não me radiografa.