segunda-feira, 15 de julho de 2024

Samba & Freddo [2]

Deixa primeiro eu contextualizar: aqui na vizinhança eu sempre reinei soberano. A Sônia do 301 tem dois yorkes chatos pra caralho que latem só de sentir o meu cheiro e que ela enche de lacinhos (patéticos!), o casal do 203 tinha um caramelo pequeno chamado Tobias, que morreu de velho, o Gustavo do 104 adotou uma cruza com salsicha no ano passado e a Tânia do bloco de lá tem uma Lulu da Pomerânia chamada Tiffany (sei pelos berros) que eu vejo daqui que vive toda enosada, porque ela não cuida da pobrezinha. Não sei pra que trazer pro apartamento, se for pra ser assim, mas por outro lado culpa da Tiffany também, que ninguém mandou ela nascer cachorro (e por isso precisar de banho no pet shop), e não autossuficiente e limpante como nós, os gatos.
Para ser franco, até me espanta que gato ninguém nunca tenha tido aqui no condomínio nesses anos - o que não evitou que eu me acostumasse à minha superioridade intelectual hors-concours sobre a matilha inteira ao meu redor. Eu me acho muito mais esperto do que eles, e é porque eu sou mesmo. Não é marra, é talento. O meu raciocínio é rápido como um centroavante que descobriu que podia meter um gol depois de cruzar meio campo pelo corredor aberto pela direita. Meu pulo é sempre certeiro. Eu me esgueiro por pequenos vãos como se eu fosse líquido e saio do outro lado, inteirinho da Silva.
Só que há três semanas chegou o Freddo. Estou miando esse nome com a boca mole, para que fique muito bem compreendido: tenho preconceito com gato de raça. Nas minhas andanças encontrei pouquíssimos deles, e suponho que seja pois ficam sempre trancafiados em casas dessas de revista com seus portões altíssimos, seus aquecimentos artificiais, seus Whiskas sachês ao gosto do freguês e suas chaises cheias de almofadas bordadas e macias para ficar em cima. Ou pelo menos é assim que eu imagino. Em todo caso, os poucos que conheci me deram amostra suficiente para concluir que só existem dois tipos: ou os gatos de raça ficam com aquela cara entojada impassível e a lentidão de uma ameba (o que detesto, porque sou ágil) ou dissimulam a cara que faz aquele da animação do Shrek - para parecerem fofinhos como um bicho de pelúcia e conseguirem o que querem. 
Desconfio ainda mais destes últimos, porque querem parecer inofensivos. Oras! Descendemos todos dos tigres (no meu caso, das panteras amazônicas) e devemos agir conforme, sob pena de que cedo ou tarde nos joguem bolinhas e saiamos saltitantes para encontrá-las e devolvê-las só para que nos joguem de novo, como se nossas vidas dependessem disso. Por outro lado, entendo o esforço que fazem para derruir a fama de que somos bichos blasés. O problema é que os de raça parecem encalacrados na sua superioridade moral do personagem de miar baixo e se moverem lentos. São uns vendidos e traidores: de todos nós, são os que mais ficam se embolando nas pernas e ciceroneando os humanos como se dependêssemos deles e não nos tivessem domesticado e tolhido a liberdade para que só então precisássemos, em primeiro lugar. Só que em relação aos outros gatos, eles se acham melhores.
E os piorzões de todos, entre os de raça, acho que são os persas laranjas. Sabem que são raros. O cenho sempre franzido é uma herança de família que lhes corre nas veias, e eu sou capaz de apostar - ainda que meramente pela observação distante de seus hábitos - que pensam que descendem de uma longa linhagem de sangue felino azul. Eu também me acho nobre, mas é por outros motivos. Tenho uma caixa de areia inteira de exemplos do que acho deles. Se os persas pudessem, só fariam as refeições com talheres. Se fossem leitores, se vangloriariam de preferir os anglófonos. Aliás, se eles viajassem, tirariam fotos na frente de livrarias para provar algum ponto sobre erudição - eu não sei exatamente qual. Ao contrário de mim, que se viajasse gostaria de lamber sorrateiro uma tulipa de cerveja importada, e não essas Brahmas que o Sérgio compra e deixa uns restos quentes dando sopa em cima da pia.
Talvez os persas sejam assim porque a eles interesse mais o mundo depreendido a partir da imaginação do que a crueza dura das coisas. Sei porque, a despeito das nossas diferenças fenotípicas e culturais, nisso eu penso um pouco como eles. Deus me livre, mas quem me dera, ter me contentado em viver todos os meus dias no conforto aquecido da biblioteca. Arranhar as capas grossas e duras de dezenas de livros por ano. Eu teria evitado tanto sofrimento. Será que eu teria sido mais feliz fazendo só isso, se não soubesse das outras coisas que podia fazer? Jamais saberemos, porque não foi o que eu fiz. Escolhi o caminho dos perigos.
Foi de tanto teorizar se havia outro gato minimamente parecido comigo no mundo - e de remoer meus pensamentos dentro deste balão de história em quadrinhos contornado pela minha melancolia - que eu resolvi saltar, quase suicida, para dar uma modesta volta na quadra pelo terreno do Vizinho naquele dia em que saí pela primeira vez. Ou eu teria ficado para sempre no parapeito dessa nossa sacada, que dá a exata altura de um pedestal.