sexta-feira, 12 de julho de 2024

Cativo [5]

Guardo o teu souvenir do Distrito da Luz Vermelha na segunda gaveta da mesinha de cabeceira como se fosse uma carta de amor. Se esse presente não tiver sido o ápice do erotismo romântico, eu não me chamo Afrodite. Bom, eu não me chamo mesmo, isso a gente sabe. Tô dizendo só pra ser lisonjeira contigo. Mas esse papo de alguma forma ainda me transporta praquele caminho de Alfredo no qual, há par de anos ou mais, pela primeira vez discutimos o assunto a sério. Houve menção ao filme do Lars von Trier - isso prefiro esquecer, até porque nunca assisti pra dizer. Eu não vou falar mais nada a ninguém sobre frequências e gatilhos, fica tranquilo, nada a reclamar, além de que agora até eu conheço esse limite. Quer dizer, sobre gatilho eu vou falar sim. Porque ainda queimo um pouco a mufa na tentativa de entender que substância molhou a caixa de fósforo. Talvez a certeza de todo o tempo das nossas vidas? Talvez. Até porque transar pra mim sempre foi, essencialmente, sobre se vingar da morte. Isso e poder. Embora entre nós quase não haja hierarquias e, se houvesse, eu teria um pouco de preguiça de dar as ordens. No mais, eu já reparei: ser visto é que te dá tesão. Atenção plena. Cuidadosa. Preocupada. E lenta. Só depois cabe a displicência. Isso é uma coisa engraçada, amor. Principalmente agora, se penso que tu és um pouco míope de mim e que talvez nos pareçamos nisso de querer sermos vistos sem precisar nos confessar para só então entregarmos a chave da porta do templo para toda e qualquer blasfêmia ou profanação que só cabem ali, sob os efeitos alucinógenos da entrega. Toda, toda, não, mas toda que der para ter sem trocar os papéis definidos. Os homens costumam ser visuais. E as mulheres, quer dizer, acho que só posso falar por mim, saem em vantagem porque preferem e sabem mostrar a carne melhor do que o que passa na cabeça - é sempre um pouco mais louco do que gostariam de admitir. Não vou elaborar. É isso e ouvir. Acho eu que te vejo bem, de qualquer modo. Bem entre as piras e cócegas e a boquinha retorcida. Apesar das vezes que te beijo menos do que gostaria. Fazemos mais aquele teatro de tentar alcançar e fingir que está difícil. Adoro, também. Tu sabes do que eu tô falando. O nosso sexo - que bênção e que maldição - nunca foi feito só de tapar buracos. Sempre demora o que demorar o meu corpo, sempre parece um calibre perfeito, sempre amanhece a promessa da possibilidade, ainda que a gente sempre acorde levemente atrasado. Suspeito que é muito pior pra quem dobra as roupas antes ou marca hora e depois um x no calendário só pra dizer que teve, e nisso tenho a impressão de que concordamos. Ele também nunca serviu de válvula de escape pra nenhum ódio brutal. Nenhum ciúme, nenhuma vontade de matar, nenhum desejo de atravessar e se fundir, nada - ele sempre só foi, orgânico como foi e quando pode, ele só é, com direito a tudo, certo como dois e dois são quatro. Quase nunca fora de casa, porém. Deus te livre desse incômodo e constrangimento. Aos poucos, é como se nunca tivesse sido no porta-malas no Perimbó. Sempre um conforto doméstico e nunca - nunca, nunca - um artifício perfeito de reconciliação, que tu teimas que se for assim vai incentivar as brigas. Não sei se tens razão. Incluso eu teorizo se foi isso, em primeiro lugar, que me ensinou esse would que eu tenho aprendido a usar nas frases quando falo de nós. O exercício subjuntivo que pichou um enorme SE em cada verbo dito no plural e nas paredes da nossa casa inteira - e, por consequência, também nas do nosso quarto, onde hoje é sexta e vamos abrir de novo as calças, as pernas, os corpos. E aquela gaveta.