domingo, 14 de julho de 2024

Cativo [6]

O jeito mais fácil de seguir amando a artista é conseguir separá-la da obra. Mais fácil que isso acho que só negligenciando a obra. Não, não que eu concorde em tu fazeres isso, só estou dizendo que sei que é o jeito mais fácil. Que aí se franzes as sobrancelhas pra me perguntar “Capítulo 3?” não preciso dizer ou justificar nada. Respondo só com uma expressão facial e um aceno de deixa pra lá com a mão, insinuando que não tens com o que se preocupar. É sempre o que basta. Zero perguntas depois. Zero investigações. Zero vindas até aqui, mesmo tendo a obrigação moral de saber que aqui é o meu lugar de capitular a loucura, se é que fosse mesmo um capítulo. Que alegria pacífica e leve deve te dar no juízo conseguir se conter para não invadir o meu manto terrestre. Não me perfurar com a britadeira nem com a picareta. Aceitar e acreditar, sem cobrar taxa aduaneira, na procedência do produto que às vezes te entrego porcamente embalado na fronteira da minha superfície. Uma marmota. Não insistir para ver mais do que o que te mostro voluntariamente deve ser pra ti uma decorrência da crença mútua e quase irrestrita que coordenamos: jamais fuçamos os celulares nem espetacularizamos as proximidades amistosas do outro com os outros. Os ciúmes deixamos para os imbecis que nunca cresceram (e para a vez que tentei voltar o anticoncepcional, aquela é outra história). A fidelidade é uma bandeira que já nasceu hasteada acima das nossas cabeças. De modo que se tu visses uma carteira de Marlboro Blue Ice pela metade e outra de Gudan quase cheia acompanhadas de um isqueiro no meu banco de trás, e não questionasse nada até eu te contar que delírio foi esse, eu me sentiria grata pelo espaço silencioso e amplo para que eu adolesça as minhas traquinagens e cometa meia dúzia de transgressões inocentes. Bebo com gelo o suco puro da tua confiança. Ele tem uns fiapos e gomos, mas sei que não é falta de amor. Longe disso. É porque tu já foste o cara paranoico antes e constatou que ele não te levaria a lugar nenhum (que não fosse pra bem longe de uma impetuosa como eu). Então o elogio é ultrassincero quando digo: tu bancas o meu pacote completo. Banca mesmo, em somas muito mais altas do que as contas do mês, e ainda que sob os protestos desconfiados do olhar daqueles teus amigos que dão de zero a dez em ti no autocontrole. Que raro é isso. Tu és seguro e te controlas. Nisso se eu souber resolver por mim mesma as minhas questões, melhor pra ti, que aí precisas te investir menos no meu processo. É que tens teus próprios demônios e mecanismos e estes já te demandam necessidades. Incluso práticas de saúde. Que cumpres bambeando, mas com toda a determinação. Trocar a comida pelo cigarro, cigarro por chimarrão, depois o chimarrão pela reclamação do quanto eu como, como, e não engordo, como ontem à noite. Os nove quilos recém perdidos na força do ódio te dão esse direito. Minha balança (a moral) pode descalibrar para menos que eu ainda vou achar que ser viciado em ser fiel é um peso que te fez largar na frente. Tu sabes. Deve ser por isso que o destino te brinda com coincidências como nos encontrarmos no drive thru do cachorro-quente depois de uma noitada separados. Quem não me procura sempre me acha, amor. Desarmada, ainda por cima. Risonha e estridente como uma melhor amiga mala. Se bem que nesse bingo tu não pontuas para ter o comparativo. Nesse sentido talvez ponto pra mim, que nunca me dispus a ser a melhor amiga espaçosa e inconveniente de ninguém comprometido. Eu sei o meu tamanho. E o de dentro tem tanto fermento agindo que eventualmente me extravasa pelos buracos da cabeça. Anota essa frase como uma receita de família tatuada no inconsciente: as coisas na minha cabeça crescem bem maiores do que sou capaz de concretizar. Mas se tu pausares de novo a série ao menor sinal de eu, sei lá, piscar mais demorado, eu realmente sou capaz de quebrar a TV em 3 pedaços só com a força da ira da mente. Tô avisando. Não que tu tenhas qualquer medo desse tipo de aviso que eu te dou. Se eu falo como quero que as coisas sejam, tu nunca te dobras de primeira sem antes se certificar de que concorda comigo por razões válidas e lógicas, que façam sentido pra ti. Ontem, por exemplo, teu sabor de pizza não era tão bom quanto os meus. Strogonoff de Carne podendo pedir Presunto de Parma? Jura? Vá lá. Não disse nada. Também sou uma escolha tua e tinhas outras provavelmente mais recomendáveis - sem obras a consumir - no teu cardápio. Então não disse nada. Aproveitei para gastar o tempo da reclamação pensando, enquanto olhava na direção do caixa um cara meio professor-de-antropologia-envelhecido-e-engordado pagando a conta: calvo tu não vais ficar. Deus abençoe todas as tuas compulsões e vícios. Vamos (nos) consumindo, vendo e avisando. Essa conta, se finalmente chegar, eu vou querer pagar no débito.