terça-feira, 16 de julho de 2024

Cativo [7]

Essa noite tu sonhaste que nos divorciávamos. E acordou me contando assim: “não lembro detalhes, mas você pediu truco e aí eu pedi seis. Te cuida, né?”. Te cuida, tu disse. Eu ainda nem tinha limpado bem as ramelas. Tem coisa mais bonita pra se dizer a alguém? Algo como dizer: te cuida pra não andar por aí desarmada pelos vales das sombras do teu destempero na minha ausência. Eu nem sei mais o que é me cuidar, acho até que nunca soube, e ainda assim prometo que, por ti, eu vou tentar. Estou tentando muito. Divorciados ou não, quando morreres vou jogar tuas cinzas num estádio. Eu já sei qual, mas me agrada ser eu a poder escolher. Aprendi a pensar nessas coisas absurdas transpondo o ruído verde do Luis Roberto, do Furlan, da Kloss, do Vincenzo e das tuas reclamações sobre a arbitragem. Por que o controle da TV só funciona bem contigo, hein? Eu teimo em achar que é a tua posição cativa no lado centro-esquerdo do sofá. Não me adianta nem ajustar data e hora - e eu nunca vou decorar que isso fique no menu de "Preferências do dispositivo". Excomungo sempre a nossa TCL enquanto te alcanço para resolver mais essa, porque detesto precisar de ti. Eu tenho o efeito de mercúrio retrógrado na ponta dos dedos e, mesmo sabendo, eu te asseguro que não estou te enrolando, não. Não é assim que eu me sinto. Hoje eu vou ao meio-dia depois de fazer o mercado pra lavar mais uma remessa das roupas da semana passada e colocar a casa em ordem. Provavelmente eu deixe um bilhete com as bananas em cima dizendo que o amor também se alimenta desses detalhes para quando voltares da academia. Vais sorrir ou só ignorar? Vou torcer pra que sintas o sorriso esticando um músculo do lado de dentro da tua boca, como uma prova daquelas que não se suspeita de que estão lá. E vou usar pouco amaciante para não desbotar tuas camisas na secadora, não te preocupa. Só não prometo não mastigar outro pedaço de carne crua recém sapecada das ondas do micro (ouço teu nojo daqui, pode se despedir me beijando na bochecha, eu não me ofendo). Depois, sob falsas alegações de que eu estou dando uma de pick me girl tão-baixinha-e-tão-fraquinha, tu podes trocar pela quarta vez o chuveiro da suíte só de alegre, me abrir este pote de conserva (que, afinal, és tu que fecha sempre com força demais) e de novo o zip-lock do Rap10 - que senão eu vou usar o dente e vai estragar tudo. E vais alcançar as tralhas das prateleiras mais altas pra mim, sim. Continua, amor. Não reclama. Faz teu nome no dia-a-dia dessa praticidade doméstica. Eu finjo que tu és necessário e eu não tenho escada, contato de marido de aluguel ou ponta de faca, e tu finges que acredita no que significa a palavra necessidade pra mim. Amanhã, a conselho teu, eu não vou. Se o fiscal chegar, eu não quero o constrangimento de ter que me esconder. Fica avisado: penso sim em ir embora uma vez por semana. O resto do tempo passo me arrependendo de ter confessado isso num domingo.