sexta-feira, 12 de julho de 2024

O cavalo da anarquia


O cavalo da anarquia
não se contenta em nunca dormir deitado
como todos os outros cavalos
A ele não basta estar teso,
sempre de pé,
insubordinável.
Quer e gosta mesmo é de desatar a correr
mundo afora
O mais rápido que sabe
Sem que lhe possam auscultar o coração
Que, aliás, bate atrás dos cotovelos.

Quando corre
É o mais rápido de todos
É o mais rápido que pode
E sente ainda menos sede
Não aceita trato,
não bebe água
- nem que seja benta -
e ofega, ofega, ofega.

Nunca lhe couberam rédeas
Jamais permaneceu calmo
Ou imóvel
Por tempo suficiente
para caber no trote lento da exibição.
Nunca passou perto de haras
Nem conhece linha de chegada

Sem vocação para unicórnio,
porque visceralmente real e vivo,
o cavalo da anarquia
sente um pouco de dó
de que não suspeitem
das tantas perdas
os outros cavalos - que cedo ou tarde param,
nem que seja um pouco,
para contemplar ao longe quaisquer horizontes:
Vales
Montes
Calmarias
Ou arquipélagos feitos de estranhezas e carinho.

O cavalo da anarquia, não.
Gosta mesmo é de correr
De ofegar
De sentir a espádua contra o vento
- nisso havendo uma inteira beleza
que contemplação nenhuma apazigua.

O cavalo da anarquia 
- a quem nunca olharam os dentes,
porque quase nunca se deu
e estão quase sempre cerrados -
só relincha de dor ou cansaço quando ninguém está olhando.

Não é daqueles que passam encilhados.
Que lhe monte apenas
quem estiver disposto
a se quebrar todo
e, ainda assim, montar de novo.
Nisso havendo o valor
de um preço
e de um acordo silencioso e ágil de almas afins.

O cavalo da anarquia
está sempre em alguma perspectiva
E por isso é que às vezes passa despercebido:
há quem o veja do tamanho
de um bibelô empoeirado de casa de vó
pegue na mão e largue,
voltando aos próprios afazeres.
A mim mais parece um Pégaso
que obriga a ajustar as esporas
que me nasceram atrás dos calcanhares.