terça-feira, 9 de julho de 2024

Cativo [3]

Disse sim pra ti, teu pai, a mãe, a cachorra caquética - que São Francisco a tenha - e os avós, que me celebram como quem torce que repitamos as décadas deles. Pra nem falar dos amigos. Amo todos e se os amo é porque também amo a rotina que construímos ao redor destes círculos. Puro movimento. Aceitas igualmente bem a minha metade. Só que tê-los na equação amplia muito a dimensão de qualquer movimento. Porque os amo, sim, já falei, vou repetir porque é muito. Mas também porque não suporto pensar no derretimento total dessa personagem que cai tão bem nos ambientes aos quais você me introduziu. Ok, ok, tampouco suporto cogitar ouvir falar sobre lanchas, menos ainda varar noites jogando RPG ou tomando água e guaraná. Isso é certo. Esse é um truco que eu não banco, nesse aspecto eu me conheço muito. Eu gosto de caupirinhas. Vinho branco. O Uruguai enaltecido. Os comentários espirituosos daquela amiga bêbada da tua mãe fingindo a boca paralisada contando dos peitos de fora em Taquaras. Tua mãe beijando a minha testa sendo que não beija a testa de ninguém. Gosto muito de tudo isso. E eu gosto, do tipo que virou costume, do nosso torpor físico coordenado. Um cuba, dois, matamos a garrafa. Gosto de termos nos encontrado no meio do caminho entre a tua arruaça sintética e o meu mérito acadêmico do Proerd. Nos perdermos um do outro também implicaria perder esses progressos, o que por certo poderia me custar toda a sobriedade do movimento natural semanal de gente que rala endoidando aos finais de semana. E depois desabando na cama, sem margem pra insônia. No pé da escada eu vi que o teu pai tem um exemplar dos Dez dias que abalaram o mundo. Eu não li, mas me veio a constatação - degrau por degrau, enquanto subia lenta e pesarosa para o quartinho - que eu também tenho os meus. Estou tão abalada, amor. Você suspeita? Não te dou pista porque não sei em que dialeto comunicar por que tomaram fermento de novo estes delírios, ousadias, solidões, descontentamentos. Então vou comunicar o quê? No fim… o que vou dizer? Que tudo está igual, menos eu? Se sei que ainda sou a mesma de antes. Só que de muito antes. Estou te prevenindo de mim. Eu nos preveni, quase o tempo todo, da partezinha inescapável de mim. Eu a diminuí. E isso - de tê-la diminuído, dobrado, refreado - é imenso. Incontornável. Tenho a impressão de que guardei o segredo dessa importância até de mim. Talvez porque ela não venda bem em nenhum mercado - meu ou teu. Ninguém tem saco para tanta subliminaridade. Para tanto subtexto. O cão e o arrependimento. Você não faz questão nenhuma de se deter nessas sutilezas. No fim, tens culpa nenhuma. Ninguém se detém. Quer dizer, quase ninguém. Pra mim às vezes elas são tudo que há. É aí - na merda fresca e fedida desse comparativo - que a nossa ruína pode se estabelecer. E agora ela lateja em mim, dolorida pra cacete, como uma unha encravada.