quinta-feira, 11 de julho de 2024

Daily bloody news

Sou o que se pode chamar de pessoa sanguínea. Como explicar? Acho que assim: tudo por dentro de mim é vermelho. Por isso é que, quase sempre, quando preciso voltar para o centro do meu vulcão e lidar com a lava viva enquanto ela respinga, meio que facilita eu carregar de amuleto uma espécie de lembrete visual de quem sou eu. Um cachecol, uma sombrinha, uma bolsa, até uma calcinha de renda (funciona mesmo que ninguém veja, na verdade se ninguém reparar que estou frágil e me valendo de subterfúgios duvidosos como este para parecer impassível, melhor ainda). É um detalhezinho de nada e a cor já me protege do gris. Uma vez tive quase uma depressão horrorosa e desatei a comprar. Roupas de todas as cores, muitas delas, mas o primeiro item da lista foi um conjunto de alfaiataria. Vermelho. A calça e o blazer. Uma coisa pra lá de Ideli Salvati. Nunca tive coragem de sair na rua com as duas peças juntas, nem no dia depois da eleição, e nesse cheguei a vestir, mas ainda assim consigo me perdoar por ter deixado o saldo da conta no... vermelho, ai que piada de mau gosto, pagando caro pelos frisos e lapelas daquela rubra poluição visual. E se sei me perdoar por ter feito aquilo é porque sei admitir que segue por baixo da minha pele o tempo inteiro a pessoa que cometeu aquela ofensa à Lei Maria da Moda. Embora essa compra tenha virado uma piada de salão. Tanto, que quando uma amiga descobriu que uma das pantones do inverno ia ser cherry bomb mandou mensagem correndo pra me avisar que finalmente eu poderia desentocar os vermelhos do armário. Não que eles vivam entocados. Só que no tom de cereja, cereja mesmo, eu não tinha nada - tive que comprar e ainda nem usei porque esfriou. Terça vesti a calça e a bota - sim, eu também tenho uma bota toda vermelha - para me fortificar bem da cintura pra baixo com a certeza de que quando o resultado do exame de segunda chegar, daqui um mês e pouco, câncer não será. Nessa levada cromática e simbólica é que ontem à noite, também para combinar com o cinza da previsão meteorológica, eu fiz planos de vestir tudo preto (um vestido, dois casacos, bota e meia calça, a viúva-que-nunca-foi), prender os cabelos num rabo de cavalo como quem se prepara para fazer um exercício ou ir à guerra e passar um batom... vermelho. Meio que funcionou, mas acho que falta retocar o botox. Corri agendar pra segunda. Meio-dia e meia era a hora de fazer a unha. Vermelho de novo porque sim. O da semana passada chamava Poder. O dessa semana chama Maçã do Amor. Essa galera que dá nome aos esmaltes é mais criativa que os outros marketeiros todos juntos, mas também pudera. Tem cor e acabamento a dar com pau. Pensei em escolher um da Colorama com desenho do Mickey na frente, que chama Selfie no Pelourinho(?), mas o excesso de informação me desorientou e desisti. Se escolho ele é meio que como se não soubesse se quero ir à Disney (isso não) ou voltar à Bahia (isso sim, hoje mais). A sorte é que minha manicure é ótima. Menos quando ofende algum Tratado de Direitos Humanos. Mas a unha ela faz bem. Fofoca, também. Ela só não gosta que demore pra escolher a cor. Sempre peço pelos da gaveta mágica - porque ali sei que ela guarda os mais novos e são os que mais duram, mas também porque posso ficar mexendo no celular no tempo de ela tirar o da semana passada, lixar e fazer as cutículas. Pedir pelos da gaveta me desobriga de olhar os trocentos coloridos que ela guarda no carrinho, como esse do Mickey, que acho que ninguém bem certa da cabeça poderia escolher. Não que eu seja bem certa da cabeça. Pode não parecer, mas tenho pouco saco pra dar uma de madame (a começar porque madame acha vermelho meio over, e como confessado alhures eu sou praticamente a Fafá de Belém entoando aquele hino que fala do comunista). Então gosto da minha manicure também porque é rápida. Enquanto ela terminava de passar a segunda demão passou a Laura pra receber outra cliente - Laura de verdade, o nome dela é esse mesmo, a maquiadora que trabalha no salão - e hoje ela tava linda como geralmente. Um blush bem coradinho que se eu faço pareço o Patatá, hoje de manhã até tentei e infelizmente pareceu, mas que nela fica bom, e um batom... vermelho. Parecido com o meu, acho que é o Ruby Woo da MAC. Quando vi a boca grande dela bem contornadinha e escarlate sabendo que o meu batom já tava meio gasto de comer a marmita correndo antes da hora marcada, não soube espantar a ideia de parecer uma dublê de corpo - só que não poeticamente, como na música do Leoni. Talvez uma dublê de (meia-)boca. Mais para o lado de uma imitação chinfrim. Pensei em usar a palavra doppelganger de novo, mas acho feio porque não sei pronunciar, e hoje estou finalmente mais honesta e prática comigo mesma do que metida a besta para impressionar. Acho que foi naquele momento em que a maquiadora passou bem maquiada que a manicure perdeu a minha atenção plena na história do cachorro que a sobrinha precisa sacrificar. Eu tenho esse dom de desconectar por uns segundos da conversa, surfar todo o Mar Vermelho dos meus pensamentos e depois voltar de Marte e responder pontualmente com "eitas" e "nossas" como se nada tivesse acontecido. Compenso a desatenção com simpatia e sempre passa batido. Às vezes até consigo situar melhor uma pergunta que simule interesse nas coisas terrenas. Na volta, ouvir falar em cachorro me lembrou de gato. Gato me lembrou de rato. E a cadeia completa dessa busca esquisita e persecutória. De ter sempre um coração trabalhando, nem que seja para bombear o sangue vivo para o meu corpo inteiro. Sou o que se pode chamar de pessoa sanguínea. Mas nem sempre o vermelho me protege de confessar que cada vez que eu chego lá, o amor já é outra coisa.