quinta-feira, 4 de julho de 2024

Mami,

Ainda ontem, a pretexto de me preparar o espírito para te escrever, como fazemos sempre nos aniversários, eu fui me alimentar de Pequenas Ervilhas e Nêsperas.
Faz quase dez anos que tu não postas nada ali. Eu sei que ninguém mais acessa blog hoje em dia. Talvez - e pra mim sei que essa verdade é maior do que pra ti - ninguém acessasse muito já naquela época, mas ainda assim nós seguimos (tu, por muitos outros meios) firmes paladinas da certeza de que não há nada mais eloquente do que um bom textão. Deve ser em razão dessa máxima que nos exibimos assim, por escrito, para quem quiser prestar atenção, há tantos anos.
Tinha muito da Adélia ali no Ervilhas, tia. Tu sabes. E de fome, claro. Temos sempre aquela fome da Adélia, acho que por isso é que escrevemos, e acho que internamente é por isso que elegeste para tua primeira vitrine de palavras esse nome de comidas. Para que quem tivesse fome, como nós, ou quisesse prestar atenção, dando-nos faca e queijo, o que também queríamos, ainda que menos que a fome, pudesse entrar e se servir num banquete sem pedir licença. É ela - a Adélia - quem bate as palmas para te chamar para vir à porta da casa das letras em absoluta literatura, concorda? Sempre tive certeza.
Vasculhando, já na primeira página encontrei uma citação do Cortázar, e nessa te repetias, duas vezes num curto espaço entre os meses. Aquela das tartarugas e cronópios. Essa coincidência me alegrou, porque sempre nos desenhamos andorinhas em textões, exatamente como me alegrou a resposta ao e-mail que te mandei sobre as recaídas quando estavas em Portugal: pero nosotros, tía, ¿cómo haremos? Recairemos sempre, e será brincando de amarelinha com as palavras, como crianças que estão aprendendo a letra cursiva.
E, por falar em juventude, parecia ter nos teus escritos uma visagem da Clarice fumando (por que ela também não usava um grampo de roupas para não amarelar as pontas dos dedos? que ideia gênia) naquela sessão de fotos famosa. Umas três poses diferentes. Ela bem nova, não fossem os traços tão característicos nem a reconheceríamos. Uma cara matreira. Mas levemente entediada. Não ainda uma escritora famosa, só os ares de musa subversiva. Um vir a ser. Quem via não podia dizer o quanto é perturbada, mas quando estava muito, cortava os cabelos. Nisso uma coisa meio Fernanda Young, mas autografada por ti mesma: Dona Ervilha. Que nunca fica triste, só está cansada.
Sempre admirei esse caleidoscópio de fontes de referências que veio de ti. Tanto a ponto de só me enxergar através dele. Mais cedo ou mais tarde isso pode me trazer problemas. Tudo que arranho na escrita é um pouco para me parecer com aquela Carmen do Ervilhas, que também é a Carmensita do Devendra, a quem brindamos hoje. A ponto de eu achar que ainda te imito um pouco, e eu espero que a essa altura tu já vejas isso como lisonjeiro. Como se diz das sete notas musicais para justificar os plágios, todos têm as mesmas 23 - ou 26, se quiser enfeitar ou dar uma de bilíngue, não é o nosso caso - letras do alfabeto para escrever. Mas nem todo mundo escreve como tu. Nisso é que te saúdo. Nem todo mundo tem essa capacidade de engendrar nos textos o comercial e também o poético, como quem tece ziguezagueando. Para ti parece fácil puxar o fio desse novelo emaranhado e costurar de novo um tecido esgarçado.
Antes que me esqueça ou me perca nas figuras de linguagem: te relendo lá pensei que é engraçado como a gente nunca sabe que está no auge, mas de alguma forma sempre está. Tem ali (tem, no presente, porque o que é escrito sempre resiste) um pouco de tudo que eu sou hoje. A mãe me ensinou a escrever, esse mérito é dela, mas foi tu quem me ensinou com o exemplo para que serve escrever. A respirar ou suspirar por escrito. Me ensinou a exibir - estou um pouco fixa nessa ideia hoje - o cozido ou o cru, por escrito, dando ao leitor o benefício da interpretação. Ou do deleite.
Um texto da primeira página me chamou mais a atenção. Primeiro porque não usavas "ou" no título - sempre anunciando que tens uma dúvida, como te é costume até hoje -, segundo porque tinhas praticamente a minha idade quando escreveu, mas terceiro e principalmente porque o título era: Para dor de barriga, olina. Para o resto, o tempo. Te lembras? Ontem me caiu como uma luva. Vou terminar te homenageando bem previsível, com as tuas próprias palavras, porque em dias como hoje é bom a gente se lembrar quem é, no que tem de melhor.
Começavas com: "Daí vem a vida e empurra as certezas e as dúvidas e muda o cenário. O que era certo como feijão com arroz fica com gosto de figo. Dá uma confusão nos sentidos. Daí vem a vida e os seus novos motivos". E terminavas assim: "Só não sabia que iria me reinventar agora. De graça. No pulo. É a ação do tempo, moldando cada semeadura. Oxalá que não tenha estiagem até vir o broto. Sou eu mesma quem vai pegar a cesta para colher o fruto. Eu volto para dar notícia. Precisava dizer tudo isso sem revelar o gosto que a coisa tem quando ela ainda não terminou. Mas para todo o resto, o tempo".
Tempo, tia. Sempre ele. Deixando nos reinventarmos e recairmos muitas vezes. Feliz aniversário, mas o que mais quero dizer agora é: feliz tempo pra ti.