sexta-feira, 12 de julho de 2024

Eco [28]

Muitos amigos me perguntam por que continuei escrevendo para a Laura depois do nosso término, considerando tudo que ela me fez (que se resume a ir embora daquele jeito) e deixou de fazer (ficar comigo, merda, era só o que eu queria...). Melhor era ter deixado quieto, eles dizem. Isso que eles nem sabem que quanto mais eu vou cavoucando, mais a coisa se regenera sem fim, como um fígado. Podia dizer células, neurônios, pesquisar um pouco para comparar com outra coisa que se regenere para bancar o inteligente, mas optei por dizer fígado pois ele digere ou não o que cai mal.
Respondo sempre que não escrevo “para”, mas “por” Laura. Uma preposição que no meu caso faz a mais significativa das diferenças. Até entendo que se preocupem comigo, que recomendem que eu não fique vidrado demais nela, para não perder a vida passando. Que tire o meu lirismo desse lugar de reciprocidade e os pés bambos no parapeito. Aí é que tá: eu não perco, eu ganho com a vida passando. Quando os fios grisalhos chegarem à vera vão me encontrar é muito do ganhador. Já que quanto mais tempo passa enquanto eu ainda escrevo, mais me sinto próximo de descobrir algo sobre mim mesmo que talvez fosse necessário jogar luz em cima, e antes não tinha luz. Era como se a Celesc tivesse cortado. Um dia ela me perguntou: e escrever, nada? O resto da história vocês já sabem. Desde então escrevo sem parar, especialmente depois do fim. E é por isso que o Caetano não me canta mais só You don’t know me, mas também I’m alive and vivo muito vivo
E tem a coisa de que já passou muito tempo. E de que eu sou um homem, porra. Eu não confundo alhos com bugalhos. Com todo o respeito, mulher é que tem talento pra isso. É óbvio que eu passo o rodo todo final de semana, de sexta a domingo pelo menos, o máximo do desempenho que o meu corpo e o meu pau aguentarem. Queria o quê? Esse barco já tá passando há um tempinho de novo embaixo da minha ponte velha de guerra, aliás.
Se eventualmente uma das “sucessoras” da Laura descobre que eu escrevo para a Laura, ainda passo por exótico, perturbadinho ou meio dodói. Não que eu não seja exótico, perturbadaço e, se investigar bem com o meu psiquiatra (que eu tive que trocar), adoentado - com laudo e tudo. Mas a aura de um problema a ser resolvido... meus amigos, que mulher não adora isso? Só não vai me responder que são as boas da cabeça. Nunca me relacionei com nenhuma dessa subespécie que não serve para nada. Outro dia li que, para as mulheres conquistarem os homens, basta que se comportem como suas mães (eca, mas é verdade), e para que os homens conquistem as mulheres, basta que se comportem como pais ausentes por três dias: sumam primeiro, e eventualmente voltem como se nada tivesse acontecido. Eu meio que concordei ali.
Enfim. Foco. O que quero dizer é o que já cantaria o Dinho Ouro Preto, aquele nobilíssimo e sábio poeta do cancioneiro nacional, no timbre mais brega que ele alcança: falar de amor não é amar alguém. Quando escrevo coisas tão profundas, tocantes, inspiradas e inspiradoras, como se ainda a amasse, talvez isso seja, sim, uma espécie de recaída da qual eu devia me envergonhar. Ou quem sabe é só uma confissão de que eu valho bem pouquinho? Já que eu fico cutucando à exaustão com um galho o meu cérebro estirado no chão pra ver se ele me dá mais um pouco das viciantes sinapses que só a Laura me provocava.
Escrever me organiza, eis o motivo da vergonha completa. Isso aqui sou eu organizado. Dá pra imaginar? Escrevo para me lembrar de que ainda sou capaz. E escrevo porque, não importa o quanto quotidianize a passagem dela na minha vida - agora por meio de memórias não mais tão fidedignas, já que apaguei todas as mensagens e áudios num impulso de deletá-la também do meu HD interno -, sei que o que escrevo ecoa fundo na Laura.
Ainda que ela não saiba, não leia, não responda. Escrever sobre ela é mantê-la viva no (meu) mundo, e eu sei (porque sinto igual) que em alguma medida agora ela precisa disso. Ela pode ter mudado de ideia sobre tudo, mas não pode mudar tão no osso o que ela é. O que ela foi do meu lado. Isso não se acha em qualquer esquina. E um dia pode ser que me responda - e depois guarde num cofre e mude a combinação de tempos em tempos, e eu só vá descobrir se ela deixar um testamento me endereçando as 945 cartas escritas a mão. O inventário do indizível. Não importa. Até lá, vou escrevendo.
Não sei explicar o que e como se deu, mas a Laura estranhamente foi capaz de extrair aquela gosma medular que ficava guardada dentro de mim. Com uma precisão de cirurgiã. As minhas células-tronco, eu vou dizer assim para ficar mais bonito. As minhas células-tronco, que por escrito podem virar muitas outras coisas maiores, melhores, além do que eram.
Ela estava com as mãos contaminadas ao fazê-lo? Estava. Atalhou todos os preceitos de biossegurança recomendados pelo Ministério da Vicissitude? Com certeza. Esqueceu as luvas e vestiu nas próprias mãos um par de meias listradas? Sim e a desgraçada ainda ficou bonita. Usou na operação uma seringa suja da heroína das suas frases feitas cheias de gracinha? Eu não tenho dúvida. Eu só sinto que não posso, ainda que já não tenhamos mais contato, desonrar o mérito de que ela desemperrou uma porta que antes estava muito trancada em mim. Trancada com a força do desnível no batente após o inchaço de uma enchente, mais sete ou oito barricadas, finalmente afiançadas por uma chave tetra. Ela abriu tudo. Não sei como. Ela escancarou. Se isso me escapar de novo, eu paro. É por isso que não paro.