sexta-feira, 19 de julho de 2024

Samba & Freddo [final]


Hoje é quarta. Faz um pouco de frio mas não chove. Tô voando em queda livre pelo vão entre os prédios na direção do apartamento da Anna. Em seco, que assim eu não ouço as censuras, os conselhos, todos os gritos ou latidos da cachorrada ao redor que quiser tentar me avisar que esse salto é maior do que todos que eu já dei por dentro de casa ou por aí, pela rua. E que gatos não têm asas. No meu caso, tampouco desconfiômetro. Em poucos instantes posso ser o bicho improvavelmente mais destemido, ousado e corajoso do planeta ou me estatelar ali embaixo no chão de paralelepípedo em um baque seco de ossinhos quebrados e tripas, o corpo pra um lado e a cabeça apontando pra outro.

Como é que eu saberia sem tentar?

Pouco tempo atrás éramos só eu, o velho parapeito, a vigésima terceira teoria consecutiva diferente a respeito de quem é o Freddo em relação aos persas laranjas metafóricos rodando em slides na minha cabeça, o meu estômago roncando de fome do fim do dia enquanto o Sérgio não chega para repor minha ração e a ansiedade. E de repente um espasmo que eu nem tive tempo de perceber passou por mim. Pra ser franco, ainda tá passando. Da ponta do meu rabo até a última pontinha das minhas orelhas triangulares. Uma espécie de solavanco invisível de muita força que veio diretamente do além, da parte de dentro das minhas costelas, e me jogou para a frente como se eu não tivesse um dente sequer de juízo.
Não esperei sinal verde. Eu me impeli a esse disparate para ver no que dava e sinto muito corretamente que de um certo ponto em diante não tenho mais volta. São só as patas bem esticadas - podem arrebentar a qualquer segundo - e o meu peso me impulsionado ao caminho aberto daquele primeiro mísero movimento que pareceu involuntário. A gravidade fazendo o seu trabalho habitual em termos de me ajudar na aceleração para a empreitada. A taquicardia apertando os botões de ligar e aumentar o volume das batidas do meu coração felino. A essa altura não sei se pareço um doido ou um doido e meio, porque fiquei meio cego dos nervos. Eu não calculei esse pulo potencialmente suicida nem as impressões que ele poderia causar (de surpresa) no Freddo. Eu não medi se era recíproco esse afã de se conhecer gatoalmente. Eu só me joguei. Porque se eu tivesse calculado não teria feito. Se eu tivesse pensado direito no que eu ia parecer quando caísse (um slime daqueles com os quais as crianças brincavam na moda passada), eu teria preferido o conforto da minha casa. Mas esse tempo de incerteza é tudo que eu tenho para me certificar de que estou vivo.
Por dias, me arrepiava o pelo inteiro pensar que qualquer movimento de me aproximar mais do Freddo, como este, depusesse contra toda a minha teoria bem fundamentada sobre os persas laranjas e os seus costumes e caprichos. A partir de determinado momento da vida, eu me organizei ao redor da ideia de repulsá-los da minha para não sofrer. E ainda assim eu estou aqui. Exausto de não confessar que eu dei pra pensar que eu sou porque ele é. Que somos feitos da mesma matéria. Em carne, osso e pelos. Às vezes no meio do dia eu estou desfilando em catwalk pela casa em direção de tomar uma água ou caçar uma mariposa e penso: eu aposto que o Freddo está fazendo exatamente o mesmo movimento espelhado depois destas paredes que nos separam. Chego a ser pueril. Por que eu estou sentindo este impulso desenfreado de aproximação? Será que, em alguma medida, o Freddo pode ser diferente? 

Talvez tenha chegado a hora de tossir esse tufo e explicar de onde vinha a minha antipatia e todas as promessas que eu fiz de nunca mais dar um voto de confiança nos persas laranjas - e, em alguma medida, no meu ponto fraco ao lidar com eles.

As gatas fêmeas podem conceber de mais que um macho - o que fez com que, muito tempo atrás, eu dividisse o ventre da minha gata mãe com um persa laranja. Fomos gêmeos de ninhada. Os tempos eram difíceis, a grana para a ração e a sensatez dos caras era pouca, e ambos fomos abandonados muito pequenos. Não postos à doação, não. Que seria o mais humano. Nós fomos abandonados. Essa condição nos aproximou como unha e carne. Ou pelo menos era o que eu achava. Passamos meses que pareceram anos sobrevivendo do pouco que encontrávamos, bem em cima de um viaduto próximo à rodovia onde nos largaram, onde subimos à custa de muito esforço com nossos passos de patinhas pequenas na intenção de nos proteger. Mas um dia, numa tocaia, aquele que eu chamava de irmão me jogou de propósito viaduto abaixo. Naquela semana eu estava aprendendo a brincar de me equilibrar no guarda-corpo, como fazem as crianças andando sobre o meio-fio, só para sentir o frio na barriga. A vista de cima sempre me agradou mais do que a horizontal. Naquele fatídico dia, ele esperou que eu alcançasse o patamar mais alto e saltou, de esguelho, para o mesmo exato ponto em que eu estava - ou, penso agora enquanto estou pairando no ar como poeira fina, num ponto parecido com o que eu me encontrava - como se não soubesse que mais que um corpo não pode ocupar o mesmo ponto no espaço sem causar problemas sérios.
Eu me quebrei todo nesse episódio - em tantos lugares e de tantas formas que não sei como não morri. Quem vê hoje essa espessa e cintilante camada fofa e negra da pelagem que me cobre inteiro não suspeita que ficaram tantas marcas e cicatrizes. Lembro de miar guturalmente enquanto via meu irmão descer, inconcebivelmente lento, aquela rampa do viaduto, para ao final ficar parado com sua laranjeza e a cara de sonso ao meu lado - na certeza de que alguém pararia com dó para me acudir, e eu estaria morto, e então o encontrariam e adotariam fácil, claro.
Fiquei aberto e sangrando no asfalto quente até a veterinária que passou por ali (e, tempos depois, me deu em adoção para o Sérgio) me encontrar e, sorte maior ainda, conseguir me reabilitar. Foram dias de muita dor. Olhando em retrospectiva essa história é péssima, mas pensando nela eu aposto que me lembro ainda pior do que ela foi. Em perspectiva, sequer durou tanto. Só que as coisas que a memória escolhe gravar têm um tempo inteiro e eterno, como uma gaveta emperrada feita só para elas. Anos depois, quando encontrei aquele que eu costumava chamar de irmão, ele teve a pachorra de me dizer com estas exatas palavras: "Nunca te traí nem cheguei perto, Samba. Foi puro acaso. Esse teu amargor com a minha condição é uma coisa que você precisa resolver consigo mesmo". Como se eu tivesse inventado aquele empurrão. Como se eu fosse louco. Como se tivesse criado uma narrativa para ser a vítima.
Eu quis matá-lo. Mordê-lo. Dar um soco (de pãozinho, mas com força) bem no meio de seu nariz, para enfiá-lo ainda mais no meio da cara. De lembrar de tudo, eu lacrimejo. Foi ali que prometi ficar fera nos saltos, e muito atento nas alturas, e nunca mais ser pego desprevenido dessa maneira pelos mesmos métodos. Valorizar a estabilidade. Cair, sim, porque não se pode evitar, mas sempre de pé. Escolhendo de onde e como me retirar. Nunca no susto. Nunca uma queda por confiar demais.
Esta é a origem da minha ojeriza dos persas laranjas. Só que, de algum jeito que eu não sei explicar, ver o Freddo lá de cima simplesmente vivendo a própria vida, sendo um gato, farejando as mesmas espécies de plantas que eu gosto de farejar, tomando água com a cabeça virada para o mesmo lado que eu costumo virar, mas certamente com sua própria personalidade, seus melindres e inseguranças, aos poucos fez com que o meu preconceito antigo fosse deixando de fazer sentido.

Pausa.

A história se alongou.

Será que conjecturei absurdos?

Ainda estou no ar.

Cadê o Freddo? Será que me viu e se escondeu? Eu não acredito. Eu não acredito que ele não tá aqui fora na sacada esperando, ansioso como eu, pra me tranquilizar em gatês dizendo que loucuras como essa sempre valem a pena.

Tragam o código de defesa do gato consumidor!

Eu quero os meus direitos!

O afeto não dá garantias?

Espio em todas as direções e finalmente, no último milésimo de segundo, encontro: Freddo está me olhando. Só que é da janela do quarto da Anna, posso supor que trancado ali por descuido. Tem a face de um tigre - está bravo só porque está preso? Ou porque eu estou prestes a invadir um espaço que era pra ser só dele? Assustado com a minha investida inconsequente? Tem rancor nesse olhar? Quer me fazer pagar? Tinha tanta curiosidade quanto eu, e agora se enfurece de não poder matá-la? Eu não sei. Só sei que, depois de tanto esforço, dos cálculos mais ou menos feitos e de todos os muitos que nunca foram, não me passou pela cabeça que ele não fosse estar no lugar de sempre para me receber, com afeto ou hostilidade. Qualquer que seja o fim deste salto, noto só agora, eu terei que encontrar um jeito de voltar ao apartamento do Sérgio sozinho, inteiramente sozinho, sabe-se lá como. Mesmo que tudo dê certo, terei que retomar o fôlego e descer sozinho, tão profundamente sozinho, do apartamento da Anna. E terei que saber como. Esse momento me lembra das piores intensidades que desperdicei. Estou me sentindo proporcionalmente corajoso e bobo. Precipitado talvez. Pareço um tonto vindo aqui assim sem avisar, é preciso um esforço empático para me entender: eu passei horas demais no parapeito da sacada só observando à distância. Até sentir que precisava estourar com a agulha fina da ponta da minha unha esse balão de gás hélio que flanava amarrado à minha cabeça feito uma coleira.

Meus bigodes adrenalizados dessa loucura não entendem racionalmente o que eu fiz milissegundos atrás - e agora suspeitam que estejamos girando e de repente parece que.

Eu alcancei.

Alcancei as patas da frente e a minha barriga no parapeito da sacada da Anna. Uma vitória dessas, minha gente, é uma vez só na vida. Eu alcancei. Agarrei com força a um vaso de bonsai de macieira e caí por dentro dele para a área além da borda - se um vizinho atento me tivesse fotografado poderia revelar o corpo ainda tremendo de medo, o pavor, a sorte, o impulso, o desejo. A ansiedade. Derrubei no chão a terra e a planta. Sujei tudo - o chão tá emporcalhado pra três gerações de limpezas. Estou alerta.

Mas eu alcancei.

Só não sei bem o quê.

Certamente não foi o ideal de que, se ele tivesse menos cara de europeu, formaríamos a dupla Samba & Frevo. Me seria mais familiar. Mas Freddo é Freddo: só existe ele no mundo, e ele não é porque eu sou. Não nasceu para sucumbir aos meus caprichos, senão para ter os próprios. Ele é porque ele é. Infungível. Que milagre este condomínio ter nos reunido. Que bom que eu tive a chance de imaginar jardins onde poderíamos passar horas, ver as fotos de quando ele era filhote, calcular todas as assimetrias que já existiam e compará-las com as que se formaram depois. Sonhei demais que podíamos inventar algo novo juntos. Ou será que ficaríamos em silêncio, lentificados e distantes, os olhos estreitados em quatro fendas que não descobrem mais do que o que já sabiam? Sem ronronar mais nada, eu saberia ao voltar para casa que em algum lugar no outro lado do condomínio - do vão, este espaço abismal que separa as pessoas das outras pessoas e os bichos dos bichos daquelas - tem outro gato.

Com os bigodes apontados para o fascínio que vem de não acreditar mais que viemos ao mundo em pares. Talvez haja mais de nós por aí. E talvez seja isso que queiram dizer quando insinuam que temos sete vidas.