terça-feira, 2 de julho de 2024

Eles passam e a gente fica

Quando abriu a porta pra se certificar de que eu já não estivesse chorando compulsivamente como no dia anterior, no tom mais complacente que conhece, fez uma pausa, deu meio sorriso e disse: "Eles passam... e a gente fica". Usou o tom de um provérbio. Era uma versão muito mais provinciana e rústica do passarão e passarinho de Quintana, mas suspeito que quis ser autoral para transparecer no gesto uma identificação das mais simplórias, e também das mais empáticas. Uma identificação genuína comigo, que agora desafiava todas as nossas tantas discordâncias. Fez para me dar ainda mais razão, como se razão fosse coisa que possa ser dada.
Afiada, eu quis muito responder que, quando corporativo é tudo que um ambiente não é, a gente fica e eles também. Mas o peso daquela igualdade temporária de condições que ele estabeleceu entre nós me fez gravitar um minuto ou dois em silêncio ao redor da frase que ficou suspensa no ar. Naquele aforismo cabia o excesso da gentileza que vinha me faltando. Acho que foi por isso que me concentrei em absorvê-la, feito esponja, para me reidratar. Imediatamente e, como se isso fosse da minha natureza, sem retorquir. A frase punha um sujeito informal mais ou menos definido - a gente - de novo e simbolicamente de pé, lado a lado. Do mesmo lado: o dos que ficam, apesar dos pesares todos.
Quando me olhou fundo nos olhos porta adentro, eu deveria ter imaginado que sairia com mais uma das suas pílulas genéricas de sabedoria. Só não poderia imaginar que fosse essa, que se propagaria no meu imaginário e alargaria o próprio alcance para além dos contornos objetivos nos quais foi ditaA vantagem de um provérbio simplificado é caber em vários contextos. Ele com certeza não fez essa conta quando me disse - mas eu, sim.
Na minha realidade, eu sabia reorganizar nós e eles nesta frase quantas vezes fosse necessário. E quem eu gostaria que passasse e quem eu gostaria que ficasse, também. Infelizmente. Das minhas portas pra dentro, a depender dos novos arranjos mentais, a máxima inclusive poderia não me dar conforto. Eles passam - caminham tão perto de nós, há tanto tempo, e continuam, ingênuos, atravessando a vida sem suspeitar com exatidão do que realmente nos move e comove. A gente fica. Porque se demora e se detém nos resíduos que se espalham por detrás das coisas grandes, nas sobras, na inspiração, no que realmente nos importa, lambendo as últimas gotas do que parece um elixir sagrado que prolonga a vida para muito além dos compromissos da agenda.
Teria sido tão terno se desconfiasse que eu tenho usado o gás dele para, tantas vezes, cozinhar em fogo lento as outras possibilidades? Se soubesse que pra mim o que mais tem importado agora são os outros assuntos que eu ainda quero ter que não a réplica de amanhã? Que eu tenho querido mais estas doses de bálsamo no meio dos dias do que os dias. Que eu tenho me lembrado que talvez custe mais do que eu queira pagar esse abrir mão de sonhar em prol de sobreviver.
Ainda que tomasse conhecimento, sei que ele não tinha muito mais para fazer. E que, se tivesse, assim como eu, não faria. Se apegaria de novo ao bonito de ficar. Talvez tenha sido isso que quis me confessar quando, com uma frase e só, me convocou para fazer parte do seu manifesto da permanência. Eu me conformo pensando que do erro podem nascer coisas muito bonitas, como os vinte e seis "I know"s de Bill Withers. Eu sei, eu sei, eu sei, repito vezes suficientes para espancar a dúvida: eles passam e a gente fica. Torcendo que os dias diluam a intensidade. Ou à espera de outro deus ex machina capaz de nos salvar.