sexta-feira, 5 de julho de 2024

Eco [26]

Precisamos falar sobre ódio. O ódio que agora contamina todas as minhas articulações e me faz andar como um robô e me faz tremer um pouco mais a cada hora, o ódio na forma de um agitamento nervoso. Sinto ódio desta certeza que a Laura me incutiu bem na parte que não é mole do cérebro - às favas com a nomeação precisa das áreas do cérebro e suas funções(!) - de como a vida pode ser. A certeza acerca de como as coisas funcionavam no mundo dela. Teria sido muito mais fácil não tê-la tido nunca, essa certeza tão palpável que lamentavelmente não é daquelas coisas que a minha memória de peixe escolheu esquecer.
Nisso sinto que me traí, acima de qualquer coisa, se for para abrir essa porteira de falar de traição. Eu me traí, em primeiro lugar. Se penso nisso quase começo a assobiar o Canto de Ossanha pra mim mesmo, pois está tudo ali. Primeiro dizer que é e não é, e depois rimar traidor com mandinga de amor. Mas aí, se chego na parte de uma estrela aparecer na manhã de um novo amor, me derreto inteiro de novo. Lá vem a imagem da Laura, estelar, celestial, perturbar esse odiento que eu sou agora.
Acho que esse ódio vem do fato de que, um passo atrás, olhando de fora, sempre esteve evidente que eu jamais poderia ter o melhor dos dois mundos. Ou eu a engoliria para dentro do meu (todo um vórtice de piração), ou seria tragado como fumaça para o dela. E mesmo assim insisti. Queria conhecer as cavidades e pulmões, se necessário. Até o capítulo dois, no qual desejaria desconhecer tudo.
O resultado é óbvio, você sabe no que deu. Eu sou um idiota e os idiotas sempre se permitem remar saudosos para regressar à própria casa, o vale da idiotice. Eu devia ter mantido fechadas as pálpebras metafóricas que sonho implantar nos meus ouvidos. Para não ouvir nem meia palavra do que Laura tinha a dizer, aquela Iara depravada. Para tentar me blindar do choque ultrassônico que as inteligentices dela exerciam em mim.
Certo sempre esteve o puto do padre de Fleabag que, tendo se banhado um pouco nas águas da tentação e do equívoco, em vez de sucumbir em afogamento - e depois em culpa - soube dizer: It’ll pass. Teve borboletas no estômago, é claro que teve algumas, mas quase não teve o ônus efetivo que elas implicam. Vivo e morro pra saber se passou mesmo, para ele e para ela, depois daquela cena. Ou melhor: se passa mais fácil para quem sabe dizer não. Aposto que sim, mas torço que não. Porque pra mim não passa. Esse ódio não passa. E ele também é uma confissão.
Sinto que preciso me justificar sobre tanto despautério escancarado da minha parte, já que olhando em retrospectiva se pode reparar, sem lupa, que eu fui inconsequente desde o início. É que existia na época uma pseudo-otimização dos meus sentidos. A audição parecia mais precisa. Os olhos mais abertos. As papilas gustativas prontas para sorver o agridoce pela extensão da língua inteira. O tato segurando qualquer corda que ela me desse.
Lá pelo quinto encontro eu já escrevia tanto, e tão compulsivamente (só o que fazia era escrever - porque se não pusesse pra fora todo o excesso de líquido que absorvia dela eu nem conseguiria mais andar, só boiaria pela vida) que me obriguei a trocar o computador pelo papel e caneta. Para me forçar a diminuir minimamente o ritmo, já que escrevo com caneta muito mais devagar do que digito. Um alcoólatra que precisa se manter totalmente abstinente para não recair ainda é um alcoólatra, além do que parar de escrever não era uma opção, então assim pelo menos eu conseguia desenhar na beira das páginas alguma fantasia de autocontrole e moderação.
Tudo que ia para o papel parecia um rascunho mal acabado e descartável da minha versão final. Ao mesmo tempo, era a minha magnum opus. Então eu imediatamente amassava as folhas depois que terminava de escrevê-las, em diminutas bolinhas de papel - as quais, depois, ela chamou de bolinhas hiperbólicas, e escrever os dois termos juntos hoje é pra mim quase um dèjá vu - para descartar no lixo e acabar com aquilo. E já quando o braço fazia o ângulo para o arremesso eu ia ficando com muita pena de que o que tinha conseguido dizer a ela e dela se perdesse, então guardava.
No encontro seguinte, arranjava sempre um pretexto e, simulando um surto de ódio como o que realmente estou tendo agora (acho que eu sabia que ele viria e estava ensaiando), no meio de qualquer frase, jogava no corpo dela a bolinha. Batia no ombro, no peito, no cotovelo, no joelho. Indolor. Pouca violência e muita maciez envolvidas. E a ergonomia do artefato fazia rolar para longe, às vezes. Não importava. Ela corria buscar do chão, onde quer que houvesse caído, abria e lia contente, ali mesmo, onde quer que estivéssemos, o que eu tinha redigido por entre os vincos amassados. Tudo aquilo que hoje tenho ódio de ter dito.

Talvez mais tarde eu reveja aquele episódio de Fleabag como se ele fosse uma aula do Telecurso 2000.