segunda-feira, 15 de julho de 2024

Samba & Freddo [3]

Godofreddo Palhares! rssprsssprss. Que baita nome de velho. Surpresa positiva é que ele não tenha uma fileira extensa de outros nomes entre o prenome e o patronímico, tão numerosos a ponto de ser difícil de decorar, como um membro da família Orleans e Bragança. Afinal, é um persa laranja. Godofreddo eu não sei de onde saiu - mas ele é Palhares porque a Anna (que hoje bem cedo gritou esse nome completo estrambólico para fazer ele sair de cima da pilha de roupas limpas) é Palhares. Sei porque eu vi o Sérgio stalkeando o Instagram dela como quem não quer nada e aproveitei para dar uma espiada rápida. Entre uma legenda inspirada e outra, o feed da Anna foi completamente alaranjado por uma dezena de fotos dele nos últimos tempos.
Eu li embaixo de uma das fotos que ele foi adotado maiorzinho (um persa?), e acho que foi essa informação que mudou um pouco as coisas de figura dentro da minha cabeça sobre o ranço antecipado que eu tenho de persas laranjas genéricos. Parece que ele já teve meia dúzia de orange cats problems, então. Talvez não seja dos piores. Foi muito bom dar uma cara objetiva (com foco e zoom) ao gato que eu só vejo à distância aqui do parapeito. Ele não é tãããão olho-junto nem tão sisudo quanto os outros persas que eu tenho no meu imaginário. Preciso ficar de olho porque pode ser dos que se fingem de amáveis para depois cccchrrr, se revelar um verdadeiro tigrinho, e assim me dar o seu bote.
Vendo as fotos até pensei que pode ser que o nome dele seja só Freddo mesmo, como a marca de sorvetes finos (por que choras, Kimyto?), e a Anna tenha encompridado na hora um nome maior que o real só pra poder engrossar a voz e ele entender que era sério. Tutor faz isso às vezes. Será que ele gosta de ser chamado de Godofreddo? Eu aposto que, no fundo, gosta. Dá uma pompa e circunstância ser um gatinho de apartamento com um nome tão grande e imponente. Principalmente porque põe um Deus pomposo na frente de um apelido relativamente simples (não fosse a dobra do d). Esse nome completo tem um tom aristocrático. Godofreddo, o Aristogático (essa pensei agora que eu vou falar pra ele, se um dia tiver a chance, para medir a febre. se ele for astuto estes cinismos vão fazer crescer o apreço que podemos vir a sentir mutuamente).
Mas Godo também rima com engodo. Que, por sua vez, rima com Visigodo. Digo, não rima. Digo, até rima, mas fica pobre porque é uma repetição literal das últimas quatro letras. Melhor mesmo é ele ter sido apelidado de Freddo. Não sei por que estou achando tão espirituoso imaginar se ele gosta ou não gosta de como lhe chamam (para perturbá-lo? de repente virei um esquerdogato e quero praticar negging?) - o fato é que passei o dia com a minha boca entreaberta, e entre um bocejo de língua esticada e outro fiquei repetindo atrás dos meus dentinhos pequenos todos os fonemas do nome Godofreddo Palhares pelos cantos aqui do apartamento. E foi sonoro.
Por falar em sonoro, outro dia o Sérgio me viu arranhando a cortina e me chamou de "Samba de Adoniran". Olha que coincidência: eu também tenho um nome encompridado que só é dito quando querem me fazer prestar atenção em algo (ou parar de fazer merda). "Samba de Adoniran". Achei engraçado demais. O Sérgio é muito bem humorado. Aprendi a gostar disso nele (do humor. e das músicas que ele está sempre ouvindo). Eu prefiro o Cartola para chorar ou a Casuarina para dançar, e é claro que o sobrenome do Sérgio não é "de Adoniran", mas até isso achei bom. Ele não se sente meu pai. Nem meu dono. As brasilidades e a MPB (e a relação elétrica da Gal Costa novinha com todos os seres respirantes que respirassem perto dela) devem ter ensinado a ele algo sobre o amor livre.
Em respeito a isso é que o toca-discos é a única coisa aqui de casa que nunca me arrisquei a chegar perto. De duas, uma: ou eu vou sair rodando e ficar tonto, ou vou querer me firmar com as garras saindo das almofadinhas das minhas patas, e aí arranho o disco inteiro. Não vou correr esse risco de chatear o Sérgio, que pelo menos tem o bom senso de dar valor à música e à arte. Por falar em música, o que será que o Freddo acha de mim quando às vezes olha pra cá e estou mexendo a minha cabeça e o meu fuço ao som da Tropicália? Será que ele repara nisso de um jeito positivo? Ele deve ouvir Mozart. O que eu tenho a ver com isso?
Passado o baque inicial da sua presença (que encheu minha vista até então pacata de pelos gatunos e desassossegos), eu quero confessar que eu acho o Godofreddo Palhares bonito. Isto é fato. E não tem a ver com feromônios, porque o meu olfato não é dos melhores, eu já disse, então nessa distância não sinto praticamente nada. E a menos que eu seja o primeiro caso de gato que virou bissexual por culpa exclusiva de contatos visuais fortuitos da história da zoologia, esta atração não se resume à forma física de seu pelo ruivo brilhante e caramelado que enxergo com o obstáculo de metros de distância. É o jeito que o Freddo caminha. Parece grande e imponente, tem uma juba que lhe dá o tamanho de um leão. Pessoalmente eu aposto (torço?) que, se derrubar um copo de água nele, fica parecendo um ratinho de laboratório.
Já eu nunca me achei dos gatos mais bonitos. Veja bem: eu não sou de se jogar fora e sei que tenho um certo apelo onde circulo (decorrente do meu porte, do tom firme do meu miado e do meu borogodó). É, acho que pra feio, feeeeeio, eu não sirvo. Mas pra bonito acho que também não. Sou apenas um gato preto comum igual a tantos outros. Será que é inveja, então, o que eu sinto dele? Eu espero que ele saiba, enquanto me olha ali de baixo, que pelo menos eu sou asseado (tirando o bafo de quando como peixe).
Sei que eu não devia estar me importando tanto com nada disso, nem dando tantos desses rssprsssprss idiotas só de saber que o nome encompridado do Freddo é Godofreddo Palhares. Eu só o vejo de longe, não temos nada em comum a não ser sermos gatos, estamos cada um no seu quadrado, separados pelo vão largo onde lá embaixo pode passar um carro pequeno ou até um furgãozinho de mudança. E assim vai ficar para sempre. Normal. A menos que...