terça-feira, 19 de março de 2019

Dois coelhos

Nossos joelhos estão roxos por baixo das calças e só nós sabemos o por quê. É de uma intimidade muito maior do que o sexo. Quando eu olho mais para a tua boca do que para os teus cabelos, sei que estou perdida. E você talvez suspeite, porque me olha do extremo oposto do banco de trás e eu fico calma por sete segundos. Sei que estou fazendo tipo: o seu ou algum, qualquer que seja. Nem por isso a minha calma é falsa. Não é que você saiba de cor o caminho, mas você sabe fazer parecer que sim. Que tudo dará certo, que há tempo para tudo, que as coisas são como são. Simples. E aí eu te espremo e não sai nada. Eu retorço você como à metade de um limão ou de uma laranja e não sai uma gota. Será plástico? Está tudo bem. Está tudo bem, porque talvez a tua falta de suco ou de seiva me traga algum equilíbrio na busca. E a tua mão entrelaça na minha olhando as unhas miúdas e não faço a mais vaga ideia se você suspeita ou não que a do anelar da mão esquerda é postiça. Botei anteontem e torci para que ninguém percebesse. Você percebe? Não consigo adivinhar se isto é importante, porque afinal eu te espremo e ainda não sai nada. Eu conheço os animais de estimação que frequentam a casa, e aquele ímã da geladeira que parece um moai mas veio de outro lugar que não a Ilha de Páscoa, mas eu não quero voltar ao tema. Não quero me demorar, embora perceba que agora eu posso, se quiser. Que é bem possível que você venha a querer. Que querer o outro de novo, pelo menos mais uma vez, é o contato mais íntimo que se pode estabelecer. Os gelos se quebram sobre a pia da cozinha e fazem barulho. Ninguém acorda. Ninguém aparece. Pisca uma luz verde naquilo no canto da sala, que eu nunca sei se é um sensor de alarme ou uma câmera. A cozinha fica suspensa nesta possibilidade que agora somos eu e você. Compartilharemos algum destino? E, afinal, isso importa? Se os seus beijos são grandes, e nossos joelhos estão roxos por baixo das calças. E se ninguém mais suspeita que estamos aqui e algo em nós nos complementa. A gente ainda não tem certeza, mas tenta. Aproveita a intimidade. A intimidade que é este fio laranja bordado cuja cor persiste depois de lavar, e que convém admirar com cautela. Não sei o que a vida me dá quando me dá você de novo, tudo tão fácil e calmo, mas sei que quando ela nos dá dois coelhos, às vezes é melhor deixá-los soltos na garagem para ver o que acontece.

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