quinta-feira, 25 de abril de 2019

O que eu vi em você

A cor quase uniforme da pele. A inacreditável beleza da cova que afunda nas bochechas por baixo da barba quando fala ou sorri. E, por falar em sorriso, a precisão milimétrica com que os olhos estreitam ainda mais quando você se diverte e a sua felicidade invade o lugar ou se anuncia numa piada boba. O jeito de voltar pra perto e sentar um pouco mais próximo de mim a cada vez que levanta. O seco da boca. O calo e o áspero da mão e o seu tamanho. O álibi da juventude. O furinho na barra da calça jeans. Preferir o Marrone. Preferir Vida Vazia. O discurso convicto sobre estar só, que redunda e denuncia precisamente o contrário. A demora do ar fazendo o caminho das suas narinas aos seus pulmões. O seu peito tentando reter o ar para não sufocar, como quem espera impaciente por algo. A voz grossa e meio rouca. O silêncio que você faz quando ainda não ouviu os dois lados da história. O silêncio que escolhe fazer depois. O cansaço. Sobretudo o cansaço de insistir na solidão e esperar, com alguma angústia, ser salvo. O reflexo disforme de mim na tua vitrine, e que só se enxerga a depender de como incide a luz. A possibilidade. Eu vi em você o que eu sei que você sabe ou intui a meu respeito, porque sabe ou intui a respeito de si mesmo. Guardei esta resposta naquele silêncio do carro no outro dia, bem. Esta confissão é um portal que atravessa o tempo, a barreira do som e aquela tangente pela qual eu saí quando você perguntou o que eu vi em você.

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