sexta-feira, 22 de março de 2019

Anônimo


No oitavo dia, fez-se o vácuo. Um hiato que denunciava que eu não exercia mais nenhum poder sobre a minha criação. Senti um gosto estranho na boca e uma ressaca nos músculos pélvicos. Deve ser assim parir. Devolver para o mundo o que nunca deixou de ser dele, com todas as angústias e incertezas do fim da gestação. Você agora era um cara totalmente diferente, finalmente dissociado de qualquer influência minha. O que era estranho mas bonito, e pensando bem eu bem que podia colocar este episódio no meu portfólio como a magnum opus da porra toda: a vez em que eu finalmente influí no conserto de um homem, ainda que não tenha desfrutado disto.
Depois de irmos do céu para a terra e depois de eu reinventar a sua humanidade, bem no fim você desgarrou de mim. Era de se esperar. Partiu-se um cordão que tecemos por meses com agulhas grossas, e eu contemplei o que havíamos sido um para o outro com todo o vazio e o oco que agora havia, feito abismo, entre nós. Você amou de novo outra pessoa quando eu ainda era incapaz de lidar com o entulho que tinha ficado e ia se amontoando. E você nem me viu enquanto cruzou esta ponte, descalço e cego. Mas eu não vou dizer que era cedo. Não guardei desejos maléficos para depois do fim. Gastei todos neste processo. Para te ser franca, se eu pudesse, teria me desfeito de você muito antes. Antes eu só não podia.
Num exercício constelatório, pus em fila todos os meus personagens preferidos que morreram nos livros e nos filmes, sem que por isso eu ou a história houvéssemos acabado junto ou perdido o sentido. E de repente você apareceu metido entre eles. Um rosto familiar no meio dos que se foram para nunca mais. Atrás de você uma moça. Com uns cabelos cacheados e uma coisa carnavalesca em formato de coração na cabeça, deusa do amor guiando o teu caminho por outro caminho.
Francamente, o oitavo dia era o tempo perfeito. Não havia mais o que criar, recriar ou contemplar na minha cabeça. Só fui capaz de enxergar ali. Com a memória em pedaços. Vasculhei em busca de resiliência no armário, porque ainda precisava. Era um trapo velho esquecido num canto. Mas ainda me servia sob medida. Vesti. Funcionou. Não doía mais. Não fazia mais sentido nenhum estender as mãos. Era até bonito ver que eu tinha te parido melhor do que era antes, mesmo que ninguém visse nunca a minha assinatura.
Quando compreendi que a arte é maior que seu autor, te larguei anônimo no mundo e pude deixar de sentir o amargo no fundo da língua. Relaxei os músculos e soube que já era tempo de aceitar que nossos corpos haviam expelido cada pedaço sólido um do outro. Até os que tínhamos trancados no meio dos dentes, fazendo peso nas ancas, cravados como espinho entre os tecidos moles. Agora sei que eu não preciso mais fazer força. Que este ouriço está parido. E que o problema maior da ignorância é que ela é cheia de lacunas que vão se completando com a nossa imaginação, de qualquer forma. E que a nossa imaginação se expande. Como este buraco negro. Em direção ao vácuo do oitavo dia. Para o nada. Para um recanto do universo ao qual ninguém nunca teve acesso. Para nunca mais.

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