segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

Gosto de morte

Só me dei conta de que eles já tinham devorado seis cigarros seguidos cada um enquanto atualizávamos uns aos outros sobre como tínhamos passado a noite quando, bastante íntimo, ele perguntou a ela se tinha café em casa. Meu nariz de fumante passiva ardia, e a ideia de tomar uma xícara de café naquela hora da manhã parecia perfeita, mas perigosa. Eu não precisava ter visão de raio-x para ver a úlcera se formando lenta nos nossos estômagos com aquela combinação.
Não há papila gustativa na minha boca que não recorde da pasta de dente impregnada nas dobras das nossas línguas da noite anterior, meio que sem enxaguar, para mascarar a ressaca. A cada aproximação era como se eu girasse o indicador inteiro dentro de um cinzeiro cheio e pusesse na boca com vontade, achando que era goiabada. E esquecesse e em seguida pusesse de novo e de novo, até dar um pouco de náusea. "Gosto de morte!"
Senti a frase pontiaguda entrar entre a quarta e quinta costela da minha própria barriga, ouvindo com espanto, como se as palavras tivessem vindo do além. Um espectro incontido da minha consciência. Ele sorriu amarelo-nicotina, mais do que os vãos entre os dentes. Ela encolheu bem os ombros e expirou na direção dos pés um cinza difuso, de certo bem da cor dos nossos pulmões e com a profundidade das rugas. Quase não pude crer que eu tinha dito aquilo em voz alta. O olhar deles se cruzou por meio segundo. Fazia calor e tinha nuvem, mas àquela altura o clima seria horrível, fosse como fosse. Eu estava indiscutivelmente fora daquele sentimento empático de cumplicidade, que envolvia somente os adictos.
Eles concordaram. Fizeram piada. Rimos todos, um pouco nervosos. Depois fizemos silêncio. Depois a chaleira ferveu. Tomei meu café instantâneo com leite e duas colheres de inconveniência. Morno. Amargo, como era de se imaginar. Conversamos e desconversamos. Não comemos nada por horas. Parecia prova de resistência. E o corpo pondo pra fora um fel unânime que se espalhava por todo o recinto. Almoçamos duas da tarde. Na sesta, deitei no peito dele no sofá improvisado. Tenho certeza que os meus cabelos e os dele tinham o mesmo cheiro. Senti os dedos que passavam de leve nas minhas costas nuas, tão ternos que pareciam querer arrancar minha culpa com afeto, sem eu precisar pedir desculpa por nada.
Ali, naquele afago, eu quis contar a ele que, apesar de tudo, eu não fui sempre assim. Quis confidenciar que na segunda-feira eu voltaria à minha vida normal e me sentiria uma super heroína que combate a moral e os bons costumes pelas ruas da metrópole nas horas vagas, quando ninguém está olhando. Também por causa dos beijos tóxicos dele. Quis falar qualquer coisa que não deixasse suspeita de que eu chegaria em casa e, sim, correria para o banho, e, sim, esfregaria o sabonete nos braços e nas pernas e no rosto inteiro com muito mais força do que é costume. E esfregaria shampoo atrás das orelhas e escovaria os dentes com cuidado, como num ritual. Quis contar da impressão de que ele jamais acessaria a camada mais profunda de mim. Que não se infiltraria pelos meus poros. E o quanto ele deveria agradecer aos céus por isso. Quis explicar que eu sei bem como é querer tanto manter algo aceso, ao alcance da mão, por pior que seja o gosto na boca e por mais danosos que sejam os efeitos.
Era tarde. Fiquei muda. Ele acendeu mais um no anterior, sem controle. Encostou os lábios finos no filtro novinho e branco e se empenhou tanto no movimento de sucção que, por trás da cabana feita para não apagar a chama, eu via as bochechas magras afundarem entre as duas carreiras de dentes, deixando-o ainda mais magro e mais pálido. Sorriu um sorriso envolto naquela névoa venenosa. Olhei fixo para aquela possibilidade que ele tinha me dado. Poderíamos viver aquelas horas sem nos importar ou apenas tragar a morte juntos, enquanto vivíamos. Só dependia escolher.

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