terça-feira, 19 de março de 2019

Chopin

Eu me lembro da primeira vez que vi um homem tocar violino. A mão direita subia e descia como a de um cirurgião habilidoso, com trejeitos muito típicos e uns óculos ovalados mirando o instrumento de canto. O pescoço retorcido e uma feição de êxtase e contentamento com a própria produção artística que só tem quem tem muita certeza do que faz. Eu acho até que ele chegou a fechar os olhos por alguns momentos, para sentir o que estava fazendo. A cena era linda. Já era o fim do inverno mas fazia frio e eu tinha me ajeitado na arquibancada e esquecido do celular e da hora e do desconforto, e só ouvia aquele som feito por aquele homem, encarando-o com um espanto na medida em que o concerto avançava. Como se fosse uma novidade que o som do violino saísse dali (de um violino tocando uma pessoa). Como se houvesse algum outro jeito ou espaço pequeno para que o som saísse entre as cordas e as cerdas. Como se. Como se. Como se. Pra mim, como se tudo fosse sempre um simulacro do que na verdade é. Lembro de suar um pouco na palma das mãos e na dobra dos joelhos. De nervosa. As pupilas dilatando. Um cheiro de hormônio saindo dos poros. Estava apaixonada! Devo ter ficado corada porque lembro de não conseguir, definitivamente não conseguir deslançar a mirada dele por duas horas ou menos, apesar de todos os outros instrumentos de corda que formavam um semicírculo ao redor e de toda a plateia. Enxergar o violinista em seu mister produziu em mim efeitos devastadores, e pouco importa que não tenham sido inéditos. Nunca mais pude ouvir música clássica sem lembrar daquele dia. Jamais pude pronunciar Chopin do jeito errado depois daquele episódio em que estive obcecada em puro amor e franco interesse romântico numa figura de quem não ouvi mais do que as explicações entre o prelúdio de um excerto e outro. Lembro de sair do teatro improvisado com as mãos enfiadas nos bolsos, envergonhada de que alguém pudesse reparar quanta atenção à apresentação eu havia dedicado. Desde então devoro tantos textos de psicanálise quanto me são possíveis e busco - é bem verdade, sem muito progresso - investigar o magnetismo que aquilo provocou em mim. Vou buscando um autor que já tenha se debruçado sobre o tema. Que explique o meu fascínio sobre o intangível e repasse a receita para voltá-lo - como um olhar - para dentro. Que dê a lição de que o outro não existe para que eu sacie nele o meu desejo por lirismo. Que diga que a satisfação dos próprios desejos não é coisa que se delegue.
Eu me lembro do quanto me custou, muito depois, perceber que não amei o violinista naquele fim de tarde, mas apenas a ponte entre nós formada pela arte: que, afinal, não leva a lugares muito distantes de mim.

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