segunda-feira, 22 de abril de 2019

Desiderando

"Eu vim pra cá sem coleira, meu amo.
Do meu destino eu mesmo desidero.
[...]
Eu sou culpado de mim.
Vou nunca mais ter nascido em agosto.
No chão de minha voz tem um outono.
[...]
Lugar sem comportamento é o coração.
Ando em vias de ser compartilhado.
Ajeito as nuvens no olho.
A luz das horas me desproporciona.
[...]
Ando muito completo de vazios.
Meu órgão de morrer me predomina.
Estou sem eternidades.
Não posso mais saber quando amanheço ontem.
Está rengo de mim o amanhecer.
Ouço o tamanho oblíquo de uma folha.
Atrás do ocaso fervem os insetos.
Enfiei o que pude dentro de um grilo o meu destino.
Essas coisas me mudam para cisco.
A minha independência tem algemas.
[...]
Esses vazios me restritam mais.
Alguns pedaços de mim já são desterro.
......................................
(É a sensatez que aumenta os absurdos?)"
   (Os deslimites da palavra - Manoel de Barros)

Eu posso me justificar com os dissabores aos quais a monogamia já me sujeitou à vontade. Secretamente, pesa em mim uma culpa cristã de se distribuir. O que, como e quantos é justo e aceitável desejar ao mesmo tempo? Que parte de mim pode botar os outros na minha tormenta com intimidade, mil perguntas e abraços apertados, dançando com eles uma ciranda que atende aos meus caprichos? Que importância têm os caprichos deles nesta equação? Qual o salvo-conduto que a solteirice me dá? Que parte do outro é a expectativa que nele eu incuto e que parte não me diz absolutamente nenhum respeito? Melhor voltar à reclusão? Que parte de mim morreu e que parte está dormindo um sono profundo? Eu agora sou outra? Ou sou a mesma, ressignificando as coisas para que se tornem mais leves? Quando é que estaremos prontos e acabados para que os traumas anteriores não maculem a folha em branco que se nos apresenta? As folhas em branco que se nos apresentam todas de uma vez, mais de uma vez.
Por-se a serviço do desejo impõe um desprendimento que, às vezes, só mesmo botando a consciência já formatada de lado. E é mesmo possível e viável este descompromisso com as consequências sentimentais de ser desejante e objeto de desejo? Eu posso mesmo expatriar as responsabilidades emocionais que costumava ter para longe da vista? Só uma vez ou outra? Em nome de uma compensação histórica? Eu estou mesmo variando o investimento para reduzir o risco da operação? Ou estou diversificando as chances de enlouquecer? As pessoas riem. A verdade é que estou tão apavorada quanto elas. Com esta nova versão. Com os altos retornos. Com todos os riscos.
Abri uma fresta das portas e eles entraram. Inequívocos. Como uma manada de elefantes, pisoteando as minhas certezas, mesmo sem me fazer esquecê-las. E penso: não foi, justo isso, o que me fizeram para que eu me fechasse? Quão menos especial uma intimidade fica quando ela não é a única? Eu posso administrar esta situação, usando as algemas do medo de ser igual ao que me feriu? É isto então a liberdade? Eu não posso, eu não posso, eu não posso trair a minha liberdade com qualquer decisão a este respeito. Embora, às vezes, eu queira. É o vício falando outra vez? É sensatez? É absurdo? E vou andando de um canto a outro desta sala de estar dentro da minha cabeça e investigo, com o laissez-passer para fazer o que quiser bem guardado no bolso. Deixai passar, eu me digo. Solta tudo que te prende ou que tenha a ver com o medo e deixa de ser caduca. Tu viestes a este mundo sem coleira. É dentro deste grilo que saltita pra lá e pra cá que está o teu destino. Tudo é desiderando. As coisas serão como serão.


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