segunda-feira, 6 de maio de 2019

Queimada

Relacionar-se é transitar, sempre perigosamente, entre um terreno que é próprio e outro que não é. É lúdico imaginar que estamos num jogo de queimada, mas nem sempre convém arremessar a bola para derrubar o que nos parece ruim ou uma ameaça do outro lado. É preciso saltitar entre as metades deste salão com passos de um ballet bem pensado e na ponta dos pés, arriscando a estadia num território no qual você é convidado para estar ou chega de surpresa. Sempre como visita. O mundo pode ser todo seu, mas é melhor não abusar. Não dá para fazer e acontecer fora de casa. É preciso descalçar os sapatos e respeitar os objetos espalhados pelo chão da casa alheia. Tudo no campo do outro também é particular e sagrado, um pouco estrangeiro, desconhecido, e vez ou outra até inóspito. Tudo está ali por um motivo. E é assim que deve ser, para que ninguém se perca pelo caminho. Ninguém nasceu ontem ou no dia que nos conheceu. Não adianta ir arrancando o que parece erva daninha do chão com toda força, mudando os móveis de lugar, varrendo a poeira fina que ficou a pretexto de fazer uma faxina necessária. E tem ainda aquele papo de Clarice: a gente nunca sabe qual o defeito que sustenta o edifício inteiro. Não se recomenda apontar o dedo na cara, explicando presunçosamente como a vida e a organização do ambiente funcionam. Porque cada templo é cada templo, e se organiza à sua maneira, no seu próprio tempo. É preciso tomar tanto cuidado para não impor as próprias verdades! Para não tentar domar ninguém nas nossas regras. Para não colonizar o outro. Para não colocá-lo ao nosso serviço. Estamos todos atravessando um processo de encontrar a melhor versão de si mesmos, aprendendo a enfeitar e arrumar o nosso espaço. Nem sempre queremos ajuda. Nem sempre estamos dispostos à catequização. Nem sempre precisamos. Há que se ter paciência: para o bem ou para o mal, ninguém volta igual depois de atravessar a fronteira.

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