domingo, 23 de maio de 2010

Versos e verbos

Era mais sóbria agora. Adulta, pronta e menos impaciente. Contudo, a monotonia dos dias beirava o incontrolável. A manhã fazia muito frio pra qualquer escrita. Antes de sair apressada do apartamento vazio pelo simples prazer de ouvir o barulho da chave girando na fechadura e batendo nos chaveiros, acomodou o conforto e a inspiração no canto esquerdo da sala. Perto da estante e longe da janela. Vestia um casaco azul marinho quase comprido demais e um lenço cor de nada cuidadosamente envolto no pescoço. O cabelo estava preso bem no alto e os brincos, compridos, balançavam com os movimentos contidos da cabeça.
Habitualmente, lia o jornal e as notícias irrelevantes todas as manhãs com a imaginação um pouco além das letras, perto de onde moram as recordações macias. Sentada, agora, de costas para o previsível, onde Damien Rice cantava no volume baixo, desavisado, em caixas de som postas em algum lugar secreto, era possível ouvir as colheres pequenas batendo nas bordas das xícaras de chá e as conversas e risos nas mesas vizinhas. Porque toda mesa vizinha tem um riso, que quase sempre não acompanha a dor que cada um carrega consigo e não corresponde ao humor de quase todo dia.
Passaria um tempo ali, com o jornal sobre a mesa e uns livros ao lado, empilhados e insatisfeitos. Uma desviada de olhar para o relógio da parede, dos modelos antigos, mandaria avisar que eram quase 10 horas. Quase tarde pra quase tudo, mas quase cedo para o sonho antigo. O sonho, antigo, era diluído nos risos dos chás e despertava nas colheres apressadas em exercer seu tímido ofício. Foi quando um suspiro se fez ao observar, da porta para dentro, com uma expressão conhecida, aquele alguém que carregava uma sacola pequena e um olhar curioso. Não se sabe o que vestia, se usava relógio ou chapéu. Não se sabe se chegava com uns pingos de chuva no rosto ou se carregava um guarda-chuva por prevenção. Mas chegava, assim mesmo. Estava desacompanhado. Poucos minutos até se reconhecerem e reconhecerem que o já que antes não acontecia poderia ser, agora.
Sem acenos, a desgosto de uma expressão que não mudou muito no decorrer dos anos, fitaram-se. O tempo passava tão rápido ali, se opondo a um retrospecto dos últimos tempos. Não mais se perguntavam o que era aquilo. As respostas seriam sempre imprecisas demais pra uma pergunta que não precisasse de nada além do silêncio, na circunstância de outrora. Suas melhores palavras desde muito eram guardadas pra ele. Nos entretextos, algumas tantas ânsias de ver. De viver. De contar. Encantar. Acompanhar.
Largou o casaco e a sacola. Não se sentou. Talvez precisasse olhar, atento, uma última vez antes do impossível. Pra ter certeza de que tudo que havia antecedido aquele momento conspirava a favor. Ela, depositava sua fé na sinceridade dos elogios que viriam, porque a sinceridade não precisava ser vista e justificada dessa vez, só suposta. E bastava uma lembrança doce, entre as tantas. Haviam agora os avisos vagando através da janela. A distância, uma recordação ou outra que fazia sorrir sopros de nostalgia. Soprar risos do que era guardado. O não-dito, o oculto, o subentendido, a aspiração de tanto tempo atrás, do vir a ter. De uma época onde se cultivava essa aspiração de vir a ter.
Talvez não se amassem. O amor é pequeno, não basta quando sozinho, precisa de uma série de laços extremos e externos, logo deixa de servir para explicação. Aquilo, ao contrário, resistia ao tempo, a falta de laços e à falta de fôlego que nunca mais aconteceu depois da despedida. Era alguma coisa entre o platônico, o esquecido e o muito desejado.
Tinha limites, ele, que não respeitava nem antes nem depois. Deveria ser, por convenção, isto que se chama de correto. Dado. Distante. Exato. Deveria ser pra facilitar as coisas, mas não: Era mais, absurda e absolutamente, do que os limites e suas transgressões. Inclusive nos versos e verbos abandonados na mesa antes do giro da chave na fechadura e do barulho que o chaveiro faria todas as vezes, depois da primeira. Ele não notaria o lenço cor de nada, a pilha de livros ou os sorrisos alheios. Ele a reconheceria, de uma vez, mais intensa, por todas as que se foram e por todas as que viriam (...)

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