segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Balé


Dobro as pernas como borboleta, a espinha ereta, o olhar fixo. O cabelo solto, as mãos sem precisão. Faz frio, eu aqueço para um balé de perfeições insuspeitadas. A boca entreaberta suplicando o sopro de vida. Não me esforço para disfarçar o encantamento. Cada detalhe atordoa. Não sei se os olhares se cruzam ou se os tatos se tocam, quando sou toda audição. O som distrai e invade. É um consolo e uma descoberta: a cabeça acenando estranho, em sincronia, em um tremelique lento e ritmado. Essa ciranda não para e de repente acontece. Ele se conecta com algo que há de profundo em mim e que agora, uma vez mais, eu conheço. Vai valsando para dentro e solitário enquanto belisca as cordas. O som saindo, ensurdecedor, como que por si, o formato do rosto e os cabelos desalinhados como o meu coração costuma estar. Uma coincidência, já não estou mais ali. A gente agora dança em segredo nos grandes salões, mas ninguém vê. Ele inventa um jeito de estar girando que acomoda o meu desejo anti-intuitivo e tortura os meus acasos. Mão na cintura, a outra em riste. Aquilo tudo toca, dá uma vertigem. Só o que temos é aquele instante. O casamento arranjado dá mais romantismo para a fuga, sempre se lê a respeito. Ninguém suspeita, mas é um encontro de almas. Praticamente em segredo, sou transportada para outras eras. Convivo em par com todos os amantes do mundo. Olho fundo nos olhos e pertenço àquele lugar e àquele momento como pertencem, mornas, as lembranças eventuais de uma saudade esquecida. Aplaudo o que acabamos de ser. Ele se curva para agradecer, demorado, e não se sabe se está contente ou se não se envaidece com a aprovação. Mas sorrimos. Como se sorrir na companhia reforçasse uma intimidade que é instantânea. Eu sei e ele sabe que o amor à arte é um narcisismo, já que é sempre sobre nós que ela diz algo e é sempre, involuntariamente, sobre o que nos diz, em particular. Eu vou embora, fugidia, quase sem forças para encontrá-lo, distante, nos sonhos, sem nunca mais vê-lo. Dorme ali um romance escondido que não se desvela, uma tórrida-ingênua-romântica-ridiculamente-pretensiosa paixão que não se leva a efeito como rezam os manuais. Levo comigo uma paz de espírito que me adormece tranquila e me atiça para a vida. Vão se esvaindo as pontes, enquanto caminhamos sobre elas. Não há retorno possível, por isso é que estes momentos são raros. Se parar para pensar, uma vida nunca cabe inteiramente na outra. Mas sobra e há - que bom que há - o assombro, uma vontade, o balé, a valsa, uma certeza. E o intraduzível.

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