domingo, 27 de setembro de 2015

Eco

A tentativa de reviver uma memória não passa de um eco e eu sei disso. Não é uma segunda resposta aos nossos dilemas pessoais, proferida pelo autor, a amante quase esquecida ou qualquer pessoa que tenha proporcionado a sensação original, mas uma repetição mecânica, em condições específicas, do que já foi dito, lido ou vivido algum dia, que dessa vez poderá ser interpretado de modo diferente. Um sentido para o presente, diretamente de um passado sobre o qual, enquanto estava sendo, não se precisava pensar muito a respeito.
As memórias servem para reorganizar o que passou de um modo nem sempre conforme e nem sempre cronológico. Por sorte, sempre haverá o recurso de olhar para trás e, numa esperança enfadonha que nos foi legada pelo empirismo, vasculhar a recordação em busca de alguma experiência que possa servir para influenciar a tomada de decisões no tempo presente. Há quem diga que as coisas que vivenciamos nos impulsionam, mesmo de maneira tácita e sem reflexões manifestas, às escolhas. A maioria de nós nunca terá certeza.
Eu posso fingir que não o quanto quiser, Laura, mas eu lembro com exatidão das nossas idas ao terraço do teu prédio. Os teus cabelos desgrenhados e escuros caídos sobre os ombros e as tuas perguntas malucas sobre as estrelas, o horóscopo e a minha disposição para insistir. Como se eu fosse um cientista maluco, meio cigano, capaz de te dar uma resposta precisa sobre o futuro. Como se desse para adivinhar o momento em que o tédio nos bateria à porta, para fugir primeiro, para não sofrer ou vitimizar quando a euforia acabasse. Tu olhavas para os lados, trêfega, debruçada no parapeito, procurando algo que pudesse te surpreender na cidade fria e escurecida. Um carro em alta velocidade, uma árvore antiga, quem sabe um mendigo ou um casal sexagenário. E eu só podia assistir ao espetáculo da tua frivolidade intensa e profunda – ninguém mais sabe ser frívola, intensa e profunda ao mesmo tempo como tu.
Falseavas a certeza de que aquele momento estava sendo infinito na minha companhia, fingindo ignorar a minha presença, sem me olhar nos olhos, para aquele instante não ser derruído por uma interrupção inesperada de realidade: nós dois, sempre tão sozinhos, ensaiando um par.
E então tu sorrias calma, sempre um pouco inquieta e um pouco confusa, sem se fazer entender. A mão tocava a minha e era familiar a sensação universal de estar consternado por aquele detalhe, aquele momento no terraço de um prédio velho do sul do mundo. Um terraço que, sozinho, não teria representado coisa alguma. Eu até hoje não entendo como aprendias uma palavra em libras, um símbolo em japonês, um poema imenso inteiro de cor, uma maneira sempre nova de me contar que estava sendo leve e tu desejavas estar ali, ao meu lado, até quando parecia irreal. E esquecias tão rápido, que se te pedia para repetir, já não sabias. Como que para dar espaço a uma surpresa nova. 
Aquilo, aquela pequena referência, era sempre uma verdade em ti. Uma verdade que, sem culpa nenhuma, nós sabíamos que acabava no capítulo seguinte. Fingias que a vida era descomplicada, sem parar de repetir todas aquelas coisas poéticas e dolorosas que já fomos e vivemos e nos fizeram chegar até ali, subir a escada precária de ferro, sujar as mãos, enferrujar o teu vestido rendado naquela aventura delicada e improvável.
Enlouquecido e entusiasmado, Laura, posso ser esmagado pela rotina, fatigado pelo álcool, embebido pela ternura de novos olhos castanhos, e jamais me desacompanha este rastro de te ler pela primeira vez, mais que uma vez e de diferentes e ternas formas, naquele terraço.
Eu só queria estar onde estivesse essa calma que de súbito se esvai agora, na forma de uma taquicardia, adivinhando este céu chuvoso de setembro da penumbra do meu quarto. Vou celebrando o que éramos, como se ter vivido aqueles momentos ainda fizesse parte do que sou agora.
Não me confesso nostálgico, Laura. Não posso generalizar esta sensação que só tu e os livros me causam. Repito o teu nome sem pensar muito a respeito, enquanto escrevo. Não quero a culpa de não te repetir concretamente, então te chamo, pra ver se tu vens, se tu voltas. Se ressurges, sempre inédita, como antes.
Depois de duas semanas sentando todos os dias na cadeira de frente para a escrivaninha e as janelas de madeira de moldura branca, sem sucesso, e finalmente agora, conseguindo confessar, como se alguém um dia pudesse ler, parece que pode funcionar: talvez eu venha derretendo as minhas geleiras.
Mais do que para refletir sobre tudo que já vivi, mudei de apartamento para me sentir capaz de mudar minha vida. Para me sentir capaz de reescrevê-la e inspirar alguma identificação. Em ti, por ti, quem sabe. Há uma espécie de matéria que constitui todos os românticos, neste território límbico chamado fim de um domingo.
Minutos antes fechei o livro com a sensação de abandono, depois de terminá-lo. Quantos destes já se foram? Dou conta de elencar, caso me esforce, a dúzia de clássicos que qualquer um com pouca presença de espírito teria orgulho de se vangloriar que leu, mas, no geral, não sei quantos deles – desde os mais desimportantes – já me passaram pelas mãos. Quantos já me agitaram os instintos e entre uma página e outra fizeram com que eu pensasse melhor sobre qualquer certeza que parecia absoluta, depois foram esquecidos? Não é possível reviver o ineditismo de um livro. Muito provavelmente, ainda que o releia o leitor não experimentará as mesmas sensações da primeira vez e se surpreenderá com trechos novos, antes despercebidos. Nunca a mesma surpresa novamente. Depois da primeira leitura, cada experiência sensorial que foi provocada não ressurge senão como um eco.
E o que eu digo sobre memórias e ecos, Laura, na verdade não passa de uma especulação. Eu quero dizer que reverberas no meu destino. Eu especulo o que continuas sendo em mim depois de nos despedirmos, mas não cravo resposta. Então dialogo contigo à distância, em segredo, em silêncio, enquanto olho janela afora como se estivesse, também eu, olhando para o fundo dos teus olhos escuros, enquanto olhas para o mundo debruçada no parapeito daquele terraço.

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