domingo, 17 de novembro de 2013

.redecorteR


Como sempre, aguardo o apetrecho homérico, talvez mágico, que subverterá o tempo. Estou deitada e deslizo a mão sobre o lado vazio da cama, o mais perto da janela. A textura do cobertor alinhado me recorda a fruta. Cada dedo desliza devagar na direção de mim até que o braço não alcance mais a proximidade, desde a lonjura. Sinto com a ponta dos dedos e as unhas arredondadas, crescidas bem pouco para fora da carne, a maciez do gesto. Já fiz coisa igual duas centenas de vezes. É sem dúvidas a atitude mais genuína que poderia tomar, é sem dúvidas o lugar vazio mais cheio - de espaço - que poderia haver para ser tocado nesse quarto três por quatro.
Tomo um gole de água. Levanto da cama em marcha à ré até a cozinha e não esbarro em nada, como se fosse personagem de folclore. Fecho e abro a geladeira, tomo a garrafa gelada nas mãos, sem coragem de abrir, a bem de que o gosto me acompanhe. Faço barulho com o que sobrou de um pêssego, cada milímetro da minha boca se molda ao caroço, depois à carne da fruta, que acabou de entrar em contato com o entremeio dos meus dentes distribuídos mais à frente do que a estética entende conveniente. Meu queixo escorre a pressa líquida de comer o pêssego. Derramo a ânsia de um instinto misturado e primitivo de saciedade e satisfação. Sou voraz para tomá-lo à boca como o sou para descascá-lo, enquanto a saliva, ainda não corrompida, denuncia o quanto ele me apetece.
Alcanço o pêssego mais bonito e, não sendo flagrada, encosto-o à bochecha esquerda e fricciono levemente, como se do contrário ele fosse se derreter ou a cena toda fosse ter menos beleza. Olho a superfície afável e o degradê corado do pêssego, que fazem lembrar qualquer coisa entre a descrição detalhada da miríade de pelos finos e claros de uma nuca sob o sol e a pele-cobertura de uma dureza que não sabe ser madura, só inesperada, e não tardará para ser descoberta.
A sacola de pêssegos entreaberta na pia da cozinha se confunde com a minha própria vida. Quero corrompê-la, meus dedos desejam atravessá-la como se a um portal temporal e cósmico. Sou acometida pelo pavor absoluto do desejo de anteceder o próximo ato. Mas só me sei se for de frente para trás. Nunca posso me prever.
De repente estou sentada no sofá, com vontade de pêssego, sem me lembrar da importância do instante que virá, para aproveitá-lo ao máximo. Insuspeitando o impulso que me moverá para o que desejo e ainda nem sei o quanto desejo. Cruzo os braços no fim do filme como quem espera impaciente pela chance de confessar a fome multifacetada de todos os dias outra vez.

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