domingo, 24 de novembro de 2013

Bebem-nos pelo caminho


No prefácio da edição que li de Cartas a Milena, Torrieri Guimarães rememora uma citação de Franz Kafka que diz: "Escrever cartas significa desnudar-se diante dos fantasmas, que esperam isso avidamente. Os beijos por escrito não chegam ao seu destino, bebem-nos pelo caminho os fantasmas." Guimarães segue dizendo que nos resta pedir a esses fantasmas de sonhos que devolvam as carícias e os beijos roubados, ou inspirem aos leitores o verdadeiro sentido dessa imensa paixão, oculto nas entrelinhas.

Eu não te escrevo a carta de amor que desejo. Não porque seria um devaneio deletério comigo mesma, nem porque não mereces. De fato, a essa altura não mereces, mas gostar de alguém e escrever uma carta de amor nada tem a ver com meritocracia. Não porque não reconheça alguma imensidão nesse projeto de paixão, nem propriamente porque não posso, nem porque tenho medo de ser mal interpretada, nem porque a escreveria às vésperas do verão e tenho medo de que seja confundida com uma carta de amor de verão... No fim das contas, meus amores são sempre veroninos.
Não te escrevo uma carta de amor porque ela seria cheia de juras pretensamente eternas, infinitas na dureza da caligrafia, referências poéticas de Quintana e paráfrases de músicas bregas do Fábio Jr., e essas referências se estragariam por mais tempo do que durássemos. Porque ela seria cheia de declarações superlativas da minha vontade de estar perto, mesmo de longe, de ver crescer o que nos antecedeu, de acompanhar o passo, de me alimentar das incoerências e inconstâncias e insatisfações que nasceram conosco e das que produzimos em nós depois de nos encontrarmos, de não ter que te deixar pra trás, de emprestar vivacidade e inspiração, de te aquecer sob a tradição surrada da tua infância, inventando novos planos pra essa recente vida adulta.
Se escrevesse uma carta de amor, e isto agora não me parece possível, anunciaria a disposição em reorganizar a vida pra caber a todo tempo nas palavras-ônibus que vais largando entre uma linha e outra. Eu não diria que não quero te repartir, mesmo amando livre. Não citaria mais Simone pra não confundir minha condição anacrônica com a modernidade que almejo, pra não me confundir com teu passado e com teu futuro. Não diria que sou o avesso do que preferes, embora acredite nisso. Não diria que o que alguém prefere diz muito mais sobre si do que sobre o que se deixa de preferir.
Eu pediria que fosse meu o beijo de despedida. Pediria a lembrança esporádica que socorre a solidão, vista da janela do ônibus, do carro, do trem, do avião. Imploraria pra ser o meio de transporte, na obrigação de fim entre o improvável e o que quer que fosse capaz de fazer darmos certo. Entretanto, qualquer súplica não faz sentido, se está sempre prestes a ser dementada.
Então escrevo, mas não uma carta. Não muito pessoalmente, não com todos os predicados que te identificariam, não de maneira direcionada a respeito. Uma carta se perderia na distância, os fantasmas não devolveriam minhas carícias desperdiçadas e os meus sonhos, agora vivos por escrito... Os beijos que eu desejasse e dedicasse nas últimas linhas esperariam ser os primeiros do reencontro. Ainda que não houvesse reencontro. Mas os fantasmas não perdoam. Os fantasmas bêbados do que também me inebria lembram que a condição platônica é nossa característica mais genuína. E que a metafísica é linda nos livros, mas dolorida e insuficiente na vida real. É pela materialidade da experiência que estampamos beijos por escrito no final das cartas.
Não te escrevo uma carta de amor pelo pudor de ficar nua diante dos fantasmas com essas unhas roídas, as olheiras escuras e o hematoma da coxa esquerda. Não te escrevo porque a avidez dos fantasmas contrasta com a paciência que me obrigo a ter nos teus silêncios. Não escrevo porque se te cortasse da vida, como corto agora... E se sangrasse, como sangro... Se meu choro de alívio fosse água com sal pra te estancar de mim... A carta seria, depois da cura, uma cicatriz. E cicatrizes permanecem.

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