terça-feira, 5 de novembro de 2013

Pedra

Hoje vesti um short rosa pink, uma camisa listrada e um blazer preto, com um sapato de salto médio cheio de tiras em cima, confortável na medida do possível. Botei meus óculos escuros pretos e novos e fui andando altiva pela rua. Usar óculos escuros é um grande momento de glória feminino. É como se o uso dos óculos precisasse acontecer para escurecer a vista porque os holofotes claríssimos estão voltadíssimos para nós. Para as feias os óculos são ótimos e para as bonitas também, pelo mesmo motivo: Os óculos não deixam que o rosto todo se revele, há sempre uma aura de mistério. E eu, que estava agora em condição de paridade com as feias e as bonitas, era inabalável. Até chutar uma pedra, tropeçar numa pedra.
Uma pedrinha de nada, uma pedrinha perdida, uma pedrinha diminutiva e moleque, uma pedrinha juventude transviada da calçada em que eu seguia, uma pedrinha matreira. Uma pedrinha na minha esquerda. Com meia dúzia de ideologias válidas e outra meia dúzia de crenças falidas que às vezes se anulavam. Eram elas: Ser pedra. Existir em órbita no seu eixo de pedra. Edificar. Ser pedra. Incomodar. Ser pedra. Vencer o jogo disputando com a tesoura que corta minhas expectativas. Ser pedra. Perder o jogo para o papel no qual me escrevo. Ser pedra. Cruzar caminhos. Ser pedra.
O meu caminho era muito, muito, muito maior do que aquela pedra. Realista e autodefensora, eu era capaz - não sem certo pesar - de ignorar qualquer meio que aquela pedra tivesse de me provar o contrário. Não caio. A pedra me aparece no caminho e ainda é um projeto mal acabado do que podia ter sido.
Depois do tropeço não faz diferença que a pedra seja ardósia ou preciosa. Chuto a pedra. A pedra me chuta no universo paralelo que eu dispenso conhecer. Numa dimensão que conhece a altura, mas não mede a queda. Numa dimensão que conhece o quanto é larga, mas desperdiça coloquialmente sua sorte. Numa dimensão que conhece e experimenta a profundidade de mim e mesmo assim a subestima.
Tropeço e quase xingo a pedra, quase me declaro para a pedra, quase levo a pedra no bolso para uma recordação. E assim a pedra quase me ganha, mas depois me perde. Porque o meu dedo começa a doer por causa da pedra. A pedra estatiza meu sentimento como se ignorasse que meu estado é, por natureza, leve, e por isso de independência diante de pedras. De independência diante das pesadas substâncias, das sólidas substâncias, das pedras substâncias. Das perdas substanciais. A pedra é meu desejo de que a antimatéria seja composta pela reação de igual intensidade dessa ignorância diante de sua existência.
Pedra é um erro de gênero, número, grau. Não cabe em nenhuma das minhas contas e ângulos, não cabe nas minhas frases de amor, motivo pelo qual preciso enfiá-la num texto sobre o árduo cotidiano. Mas a pedra continua ali, e é meu tropeço que traz em si essa certeza. A pedra é o próprio tropeço e com ele se confunde quando quase me faz cair.
Vou andando faceira e inabalável. Tropeço na pedra. A pedra quase me ganha, mas depois me perde. Equilibro outra vez, alinho a gola da camisa listrada e ajeito o short rosa pink. Ergo e acomodo os óculos. E não espero nem deixo, pela saúde dos meus joelhos, mãos, minha carne, meus ossos... E não espero nem deixo, pela integridade dos meus óculos novos que fazem enxergar a vida tão confiante... Não espero nem deixo que pedra nenhuma me desvie de mim.

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