sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Dois corações

Ganhei um colar de corações da minha madrinha e ele tem um fecho engraçado. Os corações, que são o pingente, também são o fecho do colar. Um coração maciço, fininho, e outro vazado, só contorno, que têm aparentemente o mesmo tamanho, unem-se. Transpassam-se. Um coração passa por dentro do outro, e depois o coração maciço fica fazendo pêndulo no meu decote, um pouco distante do que é só contorno, que fica perto do meu pescoço amparando também o cordão dourado que passa dentro dele. 
Minha analogia primeira, dessas que me habituei a fazer, inclinaria à análise de dois corações que se pertencem, de uma pessoa e outra, cada qual em uma ponta do cordão, sentenciadas a só fazer sentido juntas. Suportando distâncias, cordões remanescentes, as finezas e aberturas uma da outra. Muito poético mas, na prática, acho que as relações entre corações, principalmente as que envolvem ao menos um coração que eu mesma carrego, não podem se valer de tal lógica.
Então passei a pensar diferente, em uma reflexão que pode parecer absurda, mas é um tanto mais adaptada à minha visão do amor (que não pretende ser menos absurda do que é). Atentemos ao fato de que tenho dois corações na história... Talvez ambos sejam meus. Talvez só um seja, e a partir daqui a história se divide em outras duas pequenas histórias, dois finais que pretendem terminar felizes.
Se apenas um coração desses do colar for o meu, outro precisa ocupar a outra ponta, e o que ocupa a outra ponta é o que está teoricamente vazio, à procura. Porque combino mais com o coração cheio de algum composto inerente aos compostos da bijuteria-semi-joia, que não se sabe muito bem o que é, mas que parece ouro aos meus olhos. Uma camada bem fininha e por isso aparentemente frágil, de material maciço, folheado a esse valor que costumamos atribuir ao que sentimos.
Sou mais parecida com o coração que, para existir, ter função ou mesmo ser amado - seja lá a medida que emprestemos à metáfora - requer algumas concessões da outra parte. E em troca brilha, caleidoscópico. Brilha na altura do peito, brincando faceiro com o precipitar dos meus movimentos, entre um passo e outro, entre um virar de tronco para espreitar a vida e outro. Se sou o coração maciço, nem por isso o outro me será menos valioso. Somos da mesma matéria, afinal. Entretanto, a outra ponta jamais será réplica exata de mim e jamais será posse minha, na qual eu mando e desmando. Ela não serve para me repetir, ela me emoldura e, à sua medida, aceita me suportar. Nossa composição não é elementar, já fazíamos sentido muito antes, só de dividir a volta que o cordão dá ao pescoço - que é o mundo para o colar em questão.
O caso é que juntos temos muito mais graça, o coração-contorno e eu. Somos tão bem pensados que - juntos! - o lugar-comum de um coração, que é no peito, parece uma ideia genial. É assim que estar junto de alguém deve ser. Uma repetição, porque até o mundo da moda e o da política são cíclicos, quem dirá o mundo do amor, mas uma repetição que tenha em si uma audácia gritante, que não lhe permita ser confundida com qualquer outra repetição.
Talvez, contudo, os dois corações sejam meus. Por não querer frustrá-los, leitores, apresentei de antemão esta possibilidade um pouco mais egocêntrica, e deixei para explorá-la no final. Se admito conter ambos os corações é porque reconheço a força das contradições do que sinto. Porque desse modo eu poderia reservar para mim um coração permissivo, que aceitasse ser invadido, transpassado sem muitas delongas, e também um outro coração que invade. Um que foge, outro que aceita, como diria Caio Fernando em outra ocasião. O que foge desejaria alçar voo, já o que aceita, resiliente, conteria o que foge pela graça de ter estado perto.
Se os dois corações fossem meus uma volta do coração preenchido sobre a haste coracionada do que é vazado seria muito necessária, do contrário escorregariam cada qual para seu destino, como em um cabo de guerra dourado em que só a queda alivia a dúvida de qual dos dois vence.
Se esses dois corações forem meus, e é bem provável que o sejam, buscam equilibrar-se no peito para fazer justiça com meu direito de ser feliz sem reservas, equilibrando a solidão e a companhia exatamente como Têmis, a deusa cega equilibrando a balança e a espada. Se esses dois corações forem meus, um implora sossego enquanto torce, em vão, continuar sendo útil ou manter-se inteiro, mesmo cheio de espaço. O outro aceita ser de alguém que o tome nas mãos para com elas enxergar, como acontece com meu colar.

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