domingo, 20 de outubro de 2013

Que me faz sereia


É praticamente inacreditável que você me habite e que se manifeste mesmo quando tudo está na mais perfeita harmonia. Quando acabo de me satisfazer com algo. Quando, bendita, eu estava prestes a conseguir me deixar em paz. Querido, é inverossímil que você more aqui, nesse corpo franzino com algumas estrias nas coxas, manchado de patologias da derme, nesse templo secreto que eu uso como instrumento para falhar em tantos setores.
É isso mesmo, benzinho, chego a duvidar que te mereça, imagine o tamanho da contradição. Nem sei se consigo falar sobre você assim, fantasiando o quanto todo mundo pode apontar o dedo e dizer que não sou digna da segunda parte de você. Invento um lance qualquer com aquele seu irmão para me distrair, esperando que ele seja imortal, chama, infinito enquanto dure e todas as outras pieguices dos poetas, mas no fim só você persiste. Você é mesmo o único que eu sei de cor. O único que não me abandona. O único que, tenho certeza, volta aos meus braços no fim da noite, no meio da tarde, no começo do dia. O único.
É por isso que te venero. Afinal, não tenho escolha se você sempre submerge nos mares mais calmos e até nos mais revoltos, e me arrasta contigo para a água, nadando sempre, muito, perdendo o fôlego de tanto procurar tesouros perdidos no fundo do oceano. Se eu sou uma mulher quase inteira, você é a cauda de peixe e o timbre de voz que me fazem sereia. Ignorar você seria estabilizar, talvez até cultivar uma sensação honesta de satisfação, mas a gente sabe que isso não é para mim. Não fui projetada para o conformismo e a culpa é toda sua, que vive me sugerindo a chance de encontrar algo melhor na próxima esquina, se não parar de tentar, de nadar, de nadar, de nadar...
Você só é. Está sempre sendo nesse ritmo que me complica. O eco dos meus quereres.

Essa podia ser uma carta para alguém, de amor, para o amor, sobre o amor (aquele irmão que me distrai). Acho que essa é mesmo uma carta de amor. Mas no envelope, campo do destinatário, logo abaixo do "PARA", escrevi: Esse desejo por mais, mais, mais, mais (...)

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