domingo, 6 de outubro de 2013

Charme desbotado

"Dudaaaaaaa! Ô Duda, vem cá brincar, vai ser legal, a gente vai brincar de esconde-esconde!" Uma voz pueril e insistente me desperta de um sono túrbido, bradando alto da altura do térreo. Imagino que fosse um pequeno convidando uma pequena, ambos meus vizinhos, pra uma animada manhã de domingo daquelas em que só as crianças e os beatos em potencial conservam disposição.
Levantei o corpo como se ele tivesse o triplo do peso e me equilibrei sonolenta sobre as pernas. Rompi as fitinhas do braço esquerdo com a tesoura, tendo em conta que não precisava de passaporte especial pra avançar pela cozinha. Sozinha em casa, a primeira das paredes me dá bom dia e me brinda com o espelho considerável que me mostra uma boca ainda vermelha. Não a boca vermelha que escreve marcas no pescoço sem, contudo, emprestar a saliva, mas uma boca vermelha indefesa e inofensiva.
Parece-me que a boca escarlate não foi projetada para as atividades domésticas, porque não se adapta bem à xícara de café recém saída do microondas e não condiz com o estado de espírito matinal (embora embranqueça os dentes). Pela manhã a boca vermelha de sobras de batom não é sinal de perigo e nem de defesa, não impede nada e não se confunde com o gosto de vodka. Pela manhã, não sou eu que a escolho, mas ela que escolhe permanecer. Já não encanta mais, converte-se em um traço tímido de manifesta resistência ao abandono.
Duda, querida, é cedo ainda pra te explicar essas coisas, mas às vezes o charme da gente desbota. Às vezes nossos encantos perdem a razão de ser. Não sei por que aquele pequeno desejava tanto a sua companhia e não sei as razões da sua negativa, do seu brincar de esconder tão antecipado. Eu nem sei se seria mesmo legal brincar com ele, como ele dizia. Talvez você já tenha brincado outras vezes e ele tenha te encontrado cedo demais, antes de contar até dez, antevendo teus segredos, talvez tenha te ferido sem querer. E nisso nós somos tão parecidas, Duda! Os convites são sempre os mesmos, só os verbos é que mudam.
Torço por ti com a minha boca vermelha desbotada enquanto volto pra cama. Pra que valha a pena algum dos convites que você receber pra brincar ao longo dessa vida... Valha tão, tão, tão a pena que você não tenha medo, resistências, nem motivos íntimos pra não aceitar os próximos. Que você não perca cedo demais a ingenuidade de acreditar nos teus pequenos e saiba a medida exata entre esconder-se e rubro-revelar-se.

2 comentários:

Anônimo disse...

First!

Unknown disse...

Perfeito! Sempre Perfeito! =)