quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Matéria infinda

Saio quase sem tempo e entro apressada. Olho pros lados um pouco distraída e um pouco temerária como de costume e vou sentando, bem à frente, à direita, pois não há centros sentáveis por ali. No fim das contas, é o lado menos ensolarado e isso é ótimo, porque saí só com meus óculos de grau dessa vez. Acomodo a bolsa que é pequena demais no colo furtivamente, e desejo que o dia saiba ser porque é dele que espero algo. Não do novo mês, aparentemente tão desejado por tanta gente (quem dera nos reinventássemos, na prática, uma vez por ano, como pensamos nos reinventar no início de cada mês!), nem dessa semana que mal começou. Eu quero um dia bom, todo meu, eu-me-amo-não-posso-mais-viver-sem-mim como na música do Ultraje. 
E pra facilitar as coisas pro destino, sento perto da janela, com os cabelos ainda molhados, o rosto se recuperando dos traumas da última semana, a pele amarelada de uma hepatite recém descoberta e não encoberta por maquiagem, o perfume que é quase uma estreia e transita entre frutas doces e incenso, percebo agora. Mais dois anéis, um em cada mão, e um sapato de salto que faz um pouco de barulho. Não é um dia bom pra impressionar pessoas, mas não tarda pra que eu tenha companhia. 
Sessenta e seis anos bem vívidos na raiz dos cabelos, em olhos fundos, em manchas nas mãos e vincos ao redor dos olhos. Se foram bem vividos, não posso dizer, apesar de que me faz bem delirar imaginando. Em uma viagem relativamente curta a senhora me conta sobre os filhos - que não teve -, sobre a religião - que eu não pratico -, sobre as notícias sensacionalistas da tv pela manhã - que não acompanhei -, sobre sua aversão à ideia de adotar crianças - que não compartilho -, sobre seu preconceito com "homemsexuais" - que, mais do que não compartilhar, gargalho só de lembrar -, e sobre mais uma porção de "atribulações" sui generis facilmente classificáveis pelo Ministério da Saúde na ala das patologias comportamentais sérias, comuns e incuráveis. 
É de ficar boquiaberto do quanto a sinceridade daquela mulher me comoveu. Eu poderia rechaçar seus dogmas, desacreditar dos milagres que não vivenciei, denunciá-la aos patrulheiros dos direitos humanos, zombar de sua anacrônica vida à moda antiga. Entretanto, não ali. É que eu não tinha armas contra sua franqueza. Não naquela oportunidade tão específica e assustadora de ouvir aquela mulher com o interesse que não me dedicaram muitas das pessoas que eu já classifiquei como parecidas e interessantes. No fim, talvez eu pudesse emprestar a ela as condições pro dia feliz em que a moça do banco ao lado era simpática e só fazia assentir. Às vezes tudo que a gente faz é menosprezar as oportunidades. 
É óbvio que o mundo não gira por causa de mulheres como eu, que ignoram algumas convicções pra não brigar com idosas de ideias que cheiram naftalina. Mas pode ser que o mundo gire por pessoas como ela, que não se importam se agradam ou não e, mesmo sabidamente imperfeitas, transparecem com seus vincos, seus óculos antigos, suas manias e mazelas insolúveis, suas saionas comportadas (ou acima do meio das coxas?) e suas opiniões... Livres, ainda que de dentro de suas próprias grades. Por aí, vagando até acertar a companhia. 
Guardei aquela pessoa na memória pra muito além de um texto no final do dia. Com o passar das horas, tornei cada vez mais preservada nossa irremediável afinidade, como faço com todas as pessoas a quem quero muito bem. 
Andar de ônibus é matéria infinda do que escrever. Viver também.

Um comentário:

Anônimo disse...

First !

(temo o dia em que não poderei ser o primeiro a comentar, rs.)

Dentre todos os textos que eu já li, este é o que mais me envolveu e me colocou dentro da situação. Cada momento detalhado, da ao leitor uma melhor noção do momento. Ouvi aquela senhora contando as histórias, escutei as risadas, senti o cheiro do teu perfume... Enfim, gosto de detalhes.

Adorei o texto, C !