quinta-feira, 3 de junho de 2010

É apropriado

Acordo pensando em esconder meus sorrisos incontidos. Meus delírios, devaneios, poréns. E desejos e nostalgias, nesse feriado todos tão secretos que precisam ser escondidos. Ansiando esconderijos para os juramentos, que não guardo no peito por ser demasiado cheia de mim... E para as promessas que não cumpro. É apropriado, contudo, que disfarce-se: Eu preferi os gibis do Mauricio de Souza às bonecas. Mas vez ou outra, sendo menor, quando minha mãe me intimava a parecer criança-como-as-outras, eu propunha o esconde-esconde aos colegas. É apropriado que confesse-se: Propunha aquilo no que desde lá eu era boa, óbvio. Sempre escolhia os lugares mais secretos possíveis para as brincadeiras. As quais, penso, dedicando o tempo de uma contagem lenta do "pegador" até cem, me esqueciam dois dias e meio dentro da churrasqueira! É apropriado que assuma-se: Isso é puro exagero. Nunca me escondi dentro da churrasqueira, muito menos passei dois dias e meio dentro de uma, também porque era chata, desde lá cheia de dedos, e não gostava de me sujar. É apropriado que sublinhe-se: Eu sempre fui seletiva. O esconder-se precisava ser gratificante. Se o esconderijo fosse realmente bom, compensaria o meu contorcionismo e, porque não, o empenho. Dessa história de esconde-esconde, há outras coisas para admitir. É apropriado que esmiuce-se: Primeiro surgem as coisas que, por necessidade ou conveniência, esconderam de mim... O que inclui brinquedos pontiagudos, garfos, eletrônicos, fósforos, ursos de pelúcia com pêlos demais com os quais eu pudesse me sufocar, tachinhas, objetos perigosos. Depois as escondidas cestas de páscoa, bebidas alcoólicas, mazelas sociais, respostas. De onde é que os tais bebês surgem, mesmo!? É apropriado que considere-se: Das coisas que já escondi, posso contar alguns absurdos. Teve a vez do presente de natal que não encontravam e eu tinha posto atrás do sofá em vez de embaixo da árvore. As vergonhosas vezes que tinha preguiça de dobrar peças de roupa e as colocava na repartição mais baixa do armário, sendo encontradas apenas na estação seguinte - irremediavelmente amassadas. As vezes incontáveis que escondi sapatos comprados em demasia por minha mãe, a desgosto do meu pai, debaixo da cama. E teve - deixo pro final porque é a mais surpreendente - a vez que tentei esconder a chave do banheiro no lugar onde deveria haver uma lâmpada virada pra cima. Do lado do espelho. E, estando o interruptor ligado, levei um choque em duzentos volts ou watts - acho que volts - que deixou os meus dedos inescondivelmente assados por semanas e os cabelos rebeldes e indomáveis pelo resto dos meus dias. É apropriado que pondere-se: Há, ainda, alguns nem tão - ou maiores - absurdos assim... Já escondi fotos porque não desejava mais lembrar do fotografado. Já escondi dinheiro pra não gastar em créditos da Claro (a propósito, por consideração, eles deveriam esconder minha falta de saldo no fim de todo mês!). Já escondi históricos de msn. Já escondi feiúras com maquiagem. Já escondi a chave da casa com o tapete. Já escondi prova de português com nota oito. Já escondi remédio. Já escondi lirismo. Posso afirmar que tenho longa lista de antecedentes no esconde-esconde dos dias e que tudo que se esconde, concluo, ou é por necessidade ou por conveniência, como vem sendo desde os ursos de pelúcia. É apropriado que diga-se: Meus amarradores de cabelo gostam de se esconder. Assim como os calçados, os pares de brinco, minhas blusas preferidas, na hora da saída. É apropriado que pasme-se: Eu já escondi pessoas. Nomes. Sentimentos. Memórias. Mentiras. Motivos. Fatos. Eu já escondi coisas pra não cair em tentação de usar, comer, sentir, gostar, ferir. Já escondi o fato de que caí em tentação. Já escondi tragédias, segredos. É apropriado que saiba-se: Eu já escondi incertezas, cartas, ciúmes, músicas, presentes e beijos. Já escondi palavras em entrelinhas. Recentemente, venho aprendendo a esconder sorrisos. É apropriado que atente-se: Eu já me escondi de mim e de outros só pelo prazer de me procurar(em). É apropriado que esconda-se, um pouco de todas as coisas: E em lugares seguros. Logo, hoje e nos dias que seguem estarei eu - e tudo o que me adoça, dilacera, amacia e constitui - escondida em cds, livros, jornais, violões, páginas timbradas, celulares, vozes, fotografias, vídeos e paredes. Para que me encontre, sob um efeito muito mais que desejado, quem não consegue esconder-se noutro lugar que não dentro de mim.

Linhas traçadas ao som de Feedback, do Nenhum de nós.

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