quinta-feira, 5 de outubro de 2017

De novo isso

"De novo isso? Tu não tens mais sossego. Parece até que tá desesperada pra achar algo no mundo!"
A reação da minha mãe à próxima viagem, exatamente com estas palavras meio hostis, meio preocupadas, primeiro me enfureceu. Depois me fez pensar. Por fim me fez rir.

Porque pensei, primeiro, que dizia mais sobre ela do que sobre mim.

Sou filha única. Esta é a biografia do meu Twitter há meses e a minha biografia de vida há duas dúzias de anos, pelo menos. Fui mimada, embora negue. Superprotegida, embora às vezes não pareça. E, por necessidade, desenvolvi uma independência com as coisas práticas da vida (como arrumar emprego, organizar as finanças e fazer amigos) que nem todo filho único tem. Mas há um elo de dependência emocional da aprovação dos meus pais do qual dificilmente me desvencilharei por completo, porque me ancora. Não sei se isso é por si só bom ou ruim. Há dias em que quero cantar a eles Filho Único, do Erasmo Carlos, sem tirar nem por. Inclusa a parte "Você já fez a sua parte, me pondo no mundo / Que agora é meu dono, mãe, e nos seus planos não está você" - embora meio dura demais, esta última. Noutros, preciso do colo da velha e do velho, nem que seja com um aceno que assente com a cabeça num segundo. Um reforço positivo. Uma afirmação de que estou no caminho certo e aprovado pelo Ministério da Saúde dos Pais de Filhos Únicos. E não há meio melhor de conseguir essa aprovação do que seguir à risca a cartilha do jugo paterno e materno, renunciando às próprias vontades.
As lições dos meus pais, preciso admitir, já me livraram de centenas de enrascadas. Mas a verdade é que tenho me percebido mais independente do que antes, em coisas pequenas e grandes. Como se eles tivessem lapidado a matéria bruta e coubesse a mim - só a mim - os acabamentos miúdos da obra de mim mesma. E isso diz respeito, principalmente, a sentir menos o temor reverencial que fui ensinada a nutrir sem titubear, embora obviamente os respeite e admire mais do que nunca.
Talvez eles também tenham percebido. Talvez tenha demorado mais do que imaginamos, um dia, nos melhores prognósticos, que estas coisas demorariam. Mas chegou. Está chegando, eu sinto. E acho que lhes é bastante incômodo sentir a pressão das minhas asas crescendo e rompendo os limites que enxergava - e respeitava, sempre sem contestar - debaixo das asas deles.
Crescer em outras direções, que não aquelas que os meus pais idealizaram pra mim, não raro provoca um sentimento de traição para com a criação e o amor que me foram dedicados. É como trair o modelo, a matriz ideal... Mas não, não vou sossegar em casa, como desejaria minha mãe. E não, não vou viajar na companhia de um futuro marido trabalhador e protetor, como acho que pretendia meu pai. Tenho cada vez mais certeza. E estes conflitos em que não cedo e essas certezas do que não abro mão são tão recentes e inusitados que ainda não sei resolver, mas sinto que temos aprendido muito, aos poucos.

Porque por fim pensei, sorrindo, que as mães sabem sobre nós o mesmo tanto que sabemos sobre elas.

Cada viagem que decido fazer agora, por exemplo, é um pequeno band-aid que precisa ser tirado do corpo da nossa relação de pais e filha única. Para deixar aquele pequeno machucado respirar e cicatrizar entre nós, de uma vez por todas e sem maiores delongas ou dramas.
Outro dia pensei em outra analogia, que me parece ainda melhor.
Comprei meu primeiro carro há uns sete meses e, nas primeiras semanas, programei um limite de velocidade de 80km/h. Para lembrar de trocar as marchas e redobrar a atenção antes de chegar a, sei lá, o absurdo de velocidade que me pareciam os 100km/h. Era um bipbipbip chato pra danar, mas necessário pra que eu me condicionasse a ser uma boa motorista.
Há um mês, quando fiz minha primeira viagem de mais de 300km ininterruptos sozinha (sem eles), resolvi finalmente tirar aquele alarme. Um pequeno grande ato de coragem, porque dirigir me faz lembrar o quanto eu sou corajosa. E o quanto esperei para ser.
Em resumo, todas as vezes em que alcancei os necessários 100km/h naquela viagem, já na quinta marcha, eu me lembrei dos meus pais. Da preocupação que sempre tiveram com o trânsito. De como alguns hábitos podem ser mudados, porque é saudável que os filhos tenham suas próprias personalidades e escolham seus destinos. E, ao mesmo tempo, do quanto os ensinamentos deles ficarão (quaaaase todos) saudavelmente marcados em minha memória e na minha constituição como indivíduo... Embora eu desative os alarmes mais importunos, para o bem da minha sanidade mental. Enquanto aprendo a ser filha. Única, porque calhou de ser. E eles aprendem a ser pais. Como aprenderam a me ninar bebê. Como aprenderam a me suportar adolescente. E como aprendemos juntos, agora, a respeitar os adultos que somos.

De novo isso, mãe. Não tenho tido sossego. Não é um desespero. É, ao contrário, uma calmaria e uma excitação oscilantes. E uma experiência que o tempo vem me trazendo. Que enxergo bem viva e não encontro palavras para descrever. Uma fase, quem sabe? Esta agora sou eu!?
Estou mesmo buscando. Procurando achar algo no mundo. O que é, ainda não sei. Encontrando, volto pro teu colo para te mostrar.

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