terça-feira, 17 de outubro de 2017

Festa da alteridade

Hoje ficou claro até mais tarde. É o primeiro dia útil do horário de verão. Nesta brincadeira, perdi uma hora em São Paulo. Mas, para ser justa, também ganhei o feriado inteiro. Ganhei o espanto aliceano (beirando cinematográfico) da maravilha de encontrar o terraço do Centro Cultural pela primeira vez. Coisa de uma magnitude rara até para mim, que me deslumbro fácil. A liberdade distópica do homem nu da Nossacasa, balançando ao som de Transa do Caetano como se todo mundo nascesse nu e de uma nudez. O cheiro poluído da maior metrópole da América Latina que lentamente confunde o olfato, uma espécie de droga queimando debaixo de sol quente, inebriando e viciando qualquer transeunte. A Catedral da Sé, de fora pontuda e de dentro altíssima, anunciando que vai tardar para que o mundo se livre da culpa cristã. Ganhei ainda, não me permito esquecer, a garoa fina batendo na nuca, depois de me deparar com a primeira rua arborizada do Centro ziguezagueando antes de chegar à Biblioteca Mário de Andrade. E depois batendo na calçada geométrica janela da padoca afora. Brilhando no asfalto do fim do dia com as luzes dos faróis e penetrando afrontosa no terno dos desafortunados amantes de leis e cifras. Como eu. Deu vontade de contar a eles em tom de segredo, como uma boa amiga, quanta vida eu vi das portas do escritório pra fora. Tanta. Uma vida pulsante. Multifacetada. Nanaíra. Há tantos mundos para redesbravar na selva de pedra! Tanta Luz, como na estação. Tantos mundos quanto no resto do mundo. Não conheci nem metade do que se ofereceu para mim num fim de semana prolongado. São Paulo é mesmo uma festa da alteridade. Sonora e anti-intuitiva como a palavra pi-na-co-te-ca. Acolhe qualquer um. É bem verdade, e não deixo de lembrar, a capital paulista nem sempre tem olhos caridosos. Que o diga a exposição do Sesc 24 de Maio. E então, de quando em quando, caminhando nos vãos entre os arranha-céus mais antigos do país, aos quais chamamos ruas de São Paulo, a miséria deste mesmo país nos olhará no fundo dos olhos de turista e comunicará no idioma universal de uma mão estendida que ainda há muito para caminhar. E tocará o coração, tão piegas e conservador quanto foi forjado no interior do Sul, para que esqueça a indiferença costumeira do deparar-se com as misérias cotidianas e comungue o pastel de feira com um homem de pé descalço e barba por fazer. Honrando sozinha a memória das lutas que já lutaram antes de nós, sejamos gratos por elas ou não. O pedinte compra uma Coca-Cola com as próprias moedas e eu sorrio de contente, fazendo jus aos privilégios que me trouxeram ali. Quem dera todo mundo tivesse este luxo e esta dignidade. Com sorte, no meu domingo sempre haverá pastel de feira. E Coca-Cola com as próprias moedas. Quem dera São Paulo integrasse tão bem as almas humanas quanto integra as linhas coloridas do metrô. Quem dera o contraste não nos tirasse a sensibilidade mais que o necessário para uma vida sem muito sofrimento. Mas em São Paulo todo mundo é estranho. Mais estranho ainda é perceber que isto pode ser uma bênção e um alívio. Eleva a solidão da condição humana à enésima potência, e ao mesmo tempo também lembra que a vida, como alertou Vinicius, pode mesmo ser a arte do encontro embora haja tanto desencontro pela vida. Em São Paulo, procura-se um rosto conhecido em cada desconhecido. Nem por isso a cidade deixa de te acolher à sua maneira. Nesse particular, me disse muito a antiguidade boho da Balsa, onde todo mundo pode se sentir moderno e cool, por exemplo. Afinal, que sabemos nós de quem será vanguarda quando o tempo do futuro chegar!? Deve ser por isso que São Paulo não reprova as vestes de ninguém. Uma espécie de respeito ao tempo vindouro, que anda rápido por seus trilhos, nunca dorme e não bota reparo na juventude com ar de censura. E eu, que ainda não tenho a ambição de morar em São Paulo depois desta visita, ganhei a bandeira hasteada no alto do prédio famoso, que me foge o nome, finalmente entendendo a paixão instantânea do interiorano sonhador e recém-chegado. Por mais provincianos que nos sintamos, São Paulo é imensa e cortante e penetra o imaginário da gente com a certeza de que nenhum lugar jamais será inteiramente conhecido de passagem. Sei porque, por quatro dias, eu também quis me confundir à cidade grande, camuflada, e crescer todos os dias, para todos os lados. Quem sabe eu possa. Quem sabe só de regresso. Para me valer de uma última referência, para um celebrar de bodas da razão com o coração, como ensinou Galeano.

Finalmente escurece. Para ser franca tanto quanto possível, agora odeio um pouco São Paulo. Por me dar a medida de minha pequeneza de nascença. Por ser tão distante. Por me deixar na boca um gosto de manjericão que não vinga no nosso quintal. Por não fazer pesar contra minhas costas o fardo da fermata que finca o acorde na linha reta, ajudando a gravidade.

Chorei um pouco às 17h em ponto, ouvindo a música nos fones quando o avião começou a manobra para decolar de volta para casa. Lembrei que tinha perdido uma hora inteira de vida no tempo do relógio. E que São Paulo seria capaz de provocar uma saudade flutuante que só quem se permite pode sentir.

Como foi São Paulo? São Paulo, tantos mil pés lá embaixo, continua sendo. Transformada, hei de continuar também.

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