terça-feira, 4 de agosto de 2015

Catarro

Com toda razão, ninguém consegue falar sobre isso sem um mínimo grau de desconforto quando está à mesa. Não é algo de que os eruditos já tenham se ocupado em seus livros ou discos. Ninguém se sente apto para discursar a respeito quando o interlocutor faz cara de pena pelo nariz inchado ou de ojeriza, por todo o contexto. Mesmo quando alguém pergunta, chega a parecer falta de boas maneiras responder com sinceridade sobre o tema. A sua mãe se compadece, o pai dá tapinhas nas costas. Te levam à farmácia ou ao médico. Vai passar, querida. As amigas desejam melhoras, perguntam como você está, mas parece uma realidade paralela. Ninguém dá genuinamente a mínima para o catarro até ele aparecer na própria vida.
Todo mundo já teve catarro. A gente acorda um dia com um mal estar esquisito, sabe que algo não vai bem e, no dia seguinte, está com o nariz entupido ou tossindo os pulmões para fora. A cara deste tamanho. Lá está uma gripe daquelas e o maldito, congestionando tudo. Aos poucos, começa a soltar. A gente tosse e sente as postas amaldiçoadamente mais consistentes do que gostaríamos - nojentíssimas! - sobre a língua. Parece que as vísceras são constituídas de catarro.
Aquilo vai ter que sair dali. A gente quer cuspir tudo de uma vez, como quem faz uma limpeza à mão por dentro das vias aéreas, mas não pode, são as regras do jogo. Engole. Quer cuspir. O negócio tá ali. Só que todo mundo foi ensinado sobre o quanto isso é, digamos, antiestético. Não pega bem. Tosse de novo. Corre para o banheiro, uma coceira na garganta. Vem mais por aí. Tenho certeza que você está com cara de espanto ou de aversão por eu escrever a respeito, mas já sentiu tudo isso com a mesma impressão de nunca-mais-vai-passar que eu estou sentindo agora.
Falar sobre, de qualquer maneira, não traduz o sentimento. É por isso que a gente costuma reclamar do mal estar, das dores de cabeça, do tempo, da vida, mas não cita o catarro especificamente. Só faz sentido para quem está, naquele exato instante, passando pela experiência. Eu poderia passar horas buscando eufemismos, mas... Catarro é só aquela substância amarela, esverdeada, que vem não se sabe por quê. Ninguém lida bem com catarro. E ninguém, absolutamente ninguém, faz por merecer. O catarro nos põe à frente de algumas das maiores dificuldades da vida: deixar que o tempo passe e, neste meio tempo, lidar com o que acreditamos não merecer. Só percebemos que todo mundo passa por isso e sobrevive e que a vida não tem muito a ver com merecimento quando ele vai embora. 
Ocorre-me agora que o catarro (aquele mesmo de sempre, que sai dos nossos narizes desde crianças até a velhice) serve para nos dar a medida exata do quanto as próprias tragédias parecem grandiosas. Ou, quem sabe, para nos conectar por uma ou duas semanas ao esmagador desconforto coletivo que, por um motivo ou por outro, sentiremos todos durante a vida.

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