terça-feira, 28 de agosto de 2018

Ai, ai, Ritinha!

Se um dia ele voltar eu lavo a cara na pia às pressas e seco bem com batidinhas leves, as bochechas rosinhas, revigorada. Transbordando as renúncias de que sou capaz pelos poros. Cabelo preso pra trás num rabo de cavalo baixo, de mulher decente. A unha clarinha bem aparada e um batom cor-da-boca, como ensinou a capa de uma Marie Claire dos anos 60. Se ele voltar eu passo a mão com força no avental amassado e vou me desculpando a bagunça enquanto ele entra porta adentro. Pelo resto da vida. Pergunto se ele quer uma água, um chá, um café quentinho, um bolinho de milho, que eu suporte aquele drama de família como desculpa para todos os comportamentos tóxicos até a aposentadoria, que eu não divirja daquele discursinho pré-formatado, que eu sei que ele gosta. Faz bem pro ego dele. Faço massagem no pé lembrando que de todas, eu. A rua fica na rua. Dentro de casa a rainha sempre fui eu. Pra quem ele sempre volta. Ele e eu e a nossa cadelinha de raça. Nosso conto encantado. Nossa paixão de menino, sempre viva nos nossos corações. E nessa aliança há 32 anos na minha mão, a marca de sol que nunca mais vai sair. Eu concordo com ele que casamento propriamente dito era coisa dos nossos avós, mas se ele voltar eu tiro do armário e ponho no sol o vestido branco com o nome das amigas bordado na barra e, em sonho, já vejo antúrios no buquê. Como antigamente. Vou largando o emprego, a família, os meus planos. Mas só pra adiantar as coisas. Porque a gente sonha juntinhos uma velhice encantada que só o amor é capaz e é bom nada e ninguém atrapalhar. Se ele voltar eu tolero os excessos. Ignoro aquela vez que a vizinha se intrometeu no nosso amor porque ele gritou um pouquinho. Ele só tava um pouco nervoso, mas é porque me ama demais. Ninguém devia meter a colher. O dia tinha sido cheio, quem nunca passou por isso? A louca sou eu. Nunca me traiu, nem chegou perto. Esse meu ciúme é uma coisa que eu tenho que resolver comigo mesma. Por isso, se um dia ele voltar, nunca mais eu bebo uma gota de álcool, que é pra ajudar no processo. Esse meu escândalo depois de duas taças de vinho é mesmo coisa pra repensar. E essas minhas amigas são mesmo meio passadinhas. Falam muita bobagem. Se ele voltar eu não me excedo mais. Não mudo o tom ao falar de algo que me empolga ou me irrita. Não perco a mão. Eu vou ser o porto seguro que mais ou menos secretamente ele sempre esperou numa mulher. Muito diferente das outras. A futura mãe dos filhos, porque eu fico um charme segurando criança no colo! Um charme! Um meio sorriso tímido, a voz ritmada, angelical e doce, tudo muito doce, que ninguém aqui quer parecer histérica.
Se ele voltar, ai deus do céu, pensando agora, eu acho que vou ter que virar do avesso. Ai, ai, Ritinha, eu sei, eles amam as loucas, mas se casam com as outras. Pensando bem, se ele voltar, melhor que fique por lá.

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