segunda-feira, 13 de agosto de 2018

Esotérico

Eu só gosto de quem está cansado. De quem tem os problemas mais óbvios bem aparentes e sente preguiça de mascará-los. Eu gosto de olhar pra quem mistura a vida real com algo que dói em algum lugar sem saber ou querer explicar onde. É uma receita infalível. Eu gosto do benefício da dúvida entre o mistério, o desafio e o desinteresse. Em casos assim, meu coração salta pela boca e eu o engulo de novo sem mastigar. A longo prazo vou adestrar meus instintos. Agora eu gosto de quem me ensina pelas tabelas que é possível um dia se permitir de novo e até lá, muito bem, até lá o riscado é outro. Vai-se levando como dá. Vai-se vivendo.
Gosto de não ter te visto dormir. De não ter enxergado ternura demais no teu ceticismo, embora provavelmente ela exista. De não ter te permitido ser mais doce. De não ter olhado pra trás depois do último beijo de cabo de guarda-chuva. Gosto de ter esfriado o meu sangue. De não ter te assustado. Gosto de realmente não ter imaginado onde pararíamos. Um pouco mais do que de termos parado. Gosto de como me cai bem essa cara de quem não se importa. Gosto da hora que antecede o sol que torna tudo lúcido. Gosto mesmo é da véspera da ligação no dia seguinte. Do que fica suspenso, sem conclusões. Gosto destes intervalos em que o que foi incrível vai sendo varrido da minha memória para deixar de ser uma obsessão. Porque, sendo assim, parece um progresso. Deve ser por isso que eu gosto do cheiro do teu cigarro impregnado na proximidade da boca, com uma certeza de morte. Ou uma vontade de morder a vida. De leve. O músculo mais fraco da parte de dentro da coxa começando a latejar. Este reflexo no espelho. Gosto de não saber de onde veio uma massagem nas costas, no meio de tanta praticidade. Eu não vou mentir, eu gosto bastante de não saber nada do que esperar.
Olho no fundo do teu olho escuro para procurar sentido: não vejo. Eu gosto um pouco dessa aflição. De imaginar tudo que eu nunca vou saber se não perguntar, e provavelmente não saberei ainda que pergunte. Gosto da hipótese em aberto, feito um quebra-cabeça de trocentas mil peças. Pedaço por pedaço. Se cada-um-é-um-universo, quem cala é dois. Todos iguais. Eu gosto da precisão cartesiana de conseguir separar o artista da obra, mas gosto mais ainda de não me ter sido dado material suficiente para gostar demais do artista, desta vez. Eu gosto de não entender de onde brotou esse raciocínio científico diretamente de dentro de um corpinho qualquer de balada que me diz, bem direto, que vocação não existe. Que o que existe é disciplina. Eu acho que gosto da matéria pura. Da pedra bruta. Do que não é dito. Quase sem dano colateral, mistério sempre há de pintar por aí.

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