quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Os únicos


Sai a luz, ainda é dia, ele se estira no sofá. Como se já não estivesse ali há dias. Como se fosse só o que faltava. Como se o sofá fosse um reduto pra sua solidão que grita, mesmo na minha companhia. Sem luz tudo faz mais barulho. Sai a luz, a televisão desliga sozinha e fica só a nossa distância imperando em todos os cômodos. Nossa falta de assunto e minha pouca habilidade de agradá-lo com as minhas pautas. Como se no escuro do dia nossa falta de proximidade brilhasse tanto que cegasse. Com energia elétrica, somos dois separados pela tecnologia, pelas obrigações, pelas distrações. No escuro, somos os únicos culpados por não haver aproximação.
Vou fazer o almoço. Feijão, arroz e ovo frito. Não é o prato preferido, mas o microondas não funciona pra descongelar a carne e, como de costume, deixei as coisas pra última hora. Espero haver tempo pra sermos mais cúmplices na última hora. Aguardo a palavra que derreterá a geleira de um homem estirado no sofá, mão na cabeça, inatingível porque absorto pelos próprios problemas. Vasculho a geladeira e sinto falta de cenouras... Eu que nem gosto de cenouras. E me ocorre que talvez Gessinger tivesse razão quando compôs que toda vez que falta luz o invisível nos salta aos olhos.
Minhas mãos estão atadas pelos fios elétricos que agora não conduzem nada e é como se estivesse algemada ao topo de uma torre de alta tensão, perigosa, em que tudo fizesse de mim um tanto medrosa: A queda, o choque, a distância. Impossível ajudá-lo daqui.
Entram pela janela raios tímidos da luz de um sol que não dará conta de aquecer o chuveiro, quando depois de tudo um banho frio me esperar. Precisamos despertar do transe, precisamos de uma insistência sem fé nenhuma, mas a força não volta. Esperamos que qualquer suicídio nunca rime com coragem, esperamos que à luz ou no escuro não fiquemos expostos, dilacerados como estamos pela vida, cada um ao seu modo.
Volta a luz, todos os eletrodomésticos religam e fazem seus barulhos, a experiência não se apaga. Retomamos a rotina de distrações iluminadas, mas ficaremos indelevelmente marcados pelo dia em que, sem luz e sem tato pra qualquer reaproximação, nos damos conta da fragilidade cotidiana de um amor que não supre a distância contida na mesma sala de estar.

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