terça-feira, 17 de julho de 2012

Sobra-me a coragem

Foi em uma manhã em que a vida carecia de detalhes que comecei a escrever na primeira página do meu primeiro diário, ainda menina. Faz muito tempo, mas o motivo sempre foi o mesmo. Não me pergunte qual. Entretanto, hoje creio que as pessoas, sempre práticas demais, nunca poderiam compreender um terço das palavras que - o mais direta e secretamente possível - eu dirigi a elas ao longo dos anos. 
Pudera! Prolixa como me é próprio, em meu lado de dentro, sempre se misturavam e confundiam todos os ângulos das mesmas histórias. As minhas, muito reais; as fantasiadas, as que eu idealizara naquela meninice, as que me contavam com detalhes inventados e as que desejei e nunca aconteceram. Sempre muito floreadas de linguagem. 
Eram tempos difíceis para os sensíveis e autênticos. Talvez todos os tempos o sejam, mas aqueles em que eu escrevi meus primeiros parágrafos o eram de maneira própria. A máquina de escrever era inimiga dos insones como eu, com aquele barulho insuportável, denunciando aos que dormiam o tardar da hora. Eu madrugava acordada sofrendo em dose tripla: A uma, pois não poderia sair à noite para espairecer, já que a cidade andava demasiado perigosa para uma criança - como sempre foi, e ainda é. A duas, por ouvir apenas os tic-tacs insuportáveis dos relógios de cabeceira, hoje anacrônicos, por horas a fio. A três, porque não poderia esquecer os próprios pensamentos em uma folha de papel no fundo da gaveta, valendo-se da máquina de escrever. Ao menos, não antes que amanhecesse. 
Àquela época, aliás, tudo era pronto e estava dado. A felicidade inconteste era concedida somente aos audaciosos. E essa audácia pressupunha uma coragem que, de todos os momentos idos, lembro ter tido apenas quando as palavras me emprestaram a força necessária para confessar o que sentia, nem que fosse ao meu diário. Nem que fosse com palavras de criança. 
Se é de ser este, pela primeira vez, um conto biográfico, eu não poderia me esquecer daquela manhã em que fazia frio e a vida carecia, mais do que nunca, de detalhes. O dia em que alguém acorda para seu lirismo é sempre o mais bonito de todos. Mas lá se vão todos estes invernos desde o primeiro em que me pus a traduzir o que ninguém entendia. Ninguém, até chegar Lucas. Um alienígena, como eu, que nem precisava ser de outro mundo para me parecer interessante. Este estranho que tomou meu décimo livro-diário das mãos, impetuosamente, enquanto escrevia, sentada no banco daquela praça, na tarde de véspera do meu aniversário de vinte e um anos. 
E me deixou furiosa! Eu teria vasculhado em todos os planetas de todos os sistemas para recuperar aquele caderno de folhas datadas antes que Lucas, até então um desconhecido, lesse qualquer das páginas. Felizmente não foi possível. Não o foi, já que Lucas correu como um louco e desapareceu em um vão entre o Museu e o Terminal Rodoviário. 
Ainda lembro da sensação de alegria ao ver um desconhecido muito bonito se aproximar, seguida pelo terror. Um desconhecido muito bonito, sim, mas roubando meu diário sem mais nem menos, deixando-me em pânico ao imaginar que ele saberia dos meus segredos mais secretos. Voltei à casa com uma intriga nas ideias e uma dor de cotovelo enorme. Seja quem fosse, saberia mais de mim do que eu desejava. Não era um roubo comum, era um roubo intrigante que eu não reprovava de todo, o que agravava a situação. 
Dali a três semanas, quando eu já dava a causa por perdida, o carteiro bateu à porta de minha casa, com uma caixa coberta de papel pardo, endereçada a mim, sem que eu esperasse nenhuma encomenda. O remetente, contudo, era claro. Sua letra era firme ao escrever meu nome. Corri os olhos sobre o embrulho, lendo outra vez, mais pausadamente: Beatrice Novaes, rua das orquídeas, número duzentos e nove. Era mesmo pra mim. Mas o que seria? Abri com a curiosidade de uma criança. 
Era meu diário! E junto dele havia uma carta curta, datada de dois dias antes, que dizia: "Beatrice, foi um prazer lhe conhecer, ainda que nestas circunstâncias esquisitas. Eu roubando o seu diário aquela tarde na praça, você sabe. Acho que lhe devolver é o mínimo que pode fazer alguém que, depois de ler seus escritos encantadores, deseja roubar seu diário todas as madrugadas, enquanto você dorme, para ler o que há de novo. E acho, também, que o quanto sofri para descobrir seu endereço exime qualquer outra pena que este pequeno delito poderia me trazer. Assisti você escrever, detidamente, por muitas quartas-feiras de bom tempo, naquela praça. Não tive certeza de que deveria me aproximar e lhe interromper, por isso não o fiz. Mas teus olhos, tão brilhantes, me convidavam a desvendar o infinito de palavras do teu diário. Hoje sinto - porque não há outro verbo que o diga melhor - que preciso saber mais de você. Um beijo do Lucas, ladrão de diários e, quem sabe um dia, dos seus pensamentos.
Trocamos oito cartas até que ele me convidou para vê-lo, muito bem humorado: "(...) Eu sei, eu sei, você tem razão. Foi mesmo um "pequeno delito" imperdoável. Aliás, se quiser me xingar, beijar ou tomar um café, estarei naquele mesmo local que nos encontramos a primeira vez na próxima quinta, às três. E por favor, leve só o seu charme, não leve a polícia para prender esse pobre bandido." Aceitei, é claro. Talvez para poder escrever, um dia, que conheci Lucas tarde demais para não me apaixonar. Talvez para dizer que foi cedo demais para não sentir um certo remorso de que meu encantamento por ele acontecesse de maneira muito voluntária. 
Já são quase cinco da tarde e Lucas ainda não apareceu. Talvez seja um jogo. Talvez tenha tido problemas na viagem. Talvez não seja o que eu desejei que fosse, como tantos não foram até aqui. E se ele realmente não vier, ou se nada mais nesta história me fizer sorrir daqui em diante, sobra-me a coragem que as palavras sempre me deram. E este conto.

Um comentário:

Anônimo disse...

kkkkkkkkkk!


Srta. Cláudia,

O seu mistério e jeito de escrever vão me tirar algumas horinhas de sono. A curiosidade será tamanha para saber se tem a ver com a sua vida ou se é simplesmente uma ficção do nada - pensamentos, pensamentos.

Muito legal!