sábado, 14 de janeiro de 2012

O próprio veneno

Acordei bem a tempo de ouvir o controle remoto dele tocar. Talvez tenha despertado na antecipação do barulhinho estridente que o celular novo, gigante e cheio de tecnologias é capaz de fazer. De relance, vi o golpe em direção ao criado-mudo, que estava depois de mim. Um salto, praticamente ornamental, que terminaria com a tela virada pra ele no lugar exato de um braço esticado meio para cima, longe da minha vista. Coisa estranha. Nada que o meu pescoço generosamente avantajado não desse conta de minimizar, no entanto. Linhas e linhas de mensagem de texto. Um trecho de música do Gessinger? Um poema do García Márquez? Um pedido de desculpas? Eu não sabia. E tinha acabado de despertar, o que dificultava um pouco a concentração, apesar de não diminuir nem um milionésimo da agitação com a cena - curta e relativamente patética.
Devo ter murmurado um "quem é?", embora não tenha certeza de concatenar bem as ideias para um feito de tão grandioso porte. E ele disse: "uma amiga, a avó dela faleceu". E àquela altura eu tive certeza de que não há nada de mais estranho no mundo do que ser acordada com uma notícia de avó de amiga que falece às quatro e quinze da tarde. Principalmente se o número da outra operadora toca menos de dez minutos depois, e ele resolve não atender. Abandono o travesseiro e deito longe da conchinha. Ah, meu temperamento de menina de doze anos! Tão bom relembrá-lo. Franzindo o cenho da maneira mais enigmática possível, arquitetei a vingança que comeria quente.
Temos poucas horas. Beijo-lhe devagar, fecho os olhos como se não soubesse o que me espera, nego-lhe o óbvio e ofereço, cru, o que não sei compreender - só sinto e faço questão de querer. E embora parecesse uma dose pequena de um veneno suficientemente letal e cruel na demora, o que eu destilava aos poucos não era mais do que um ciúme cento e vinte por cento humano.
E como nua de disfarces eu não sei mentir: ciumenta que sou, sincera que sou, pulguenta atrás da orelha que sou e contida que não sou, disparo: "Tu te importas que eu veja a mensagem da tua amiga?" E ele, que torceu o nariz severamente mas fingiu não se importar, mostrou o que na verdade eu não queria ver, mas precisava. Uma mensagem de muitas linhas, que eu não li, e algumas conversas anteriores, que eu li e que apareceram na tela por culpa do avanço tecnológico que é o controle remoto que ele chama de celular. Senti as bochechas quentes e mais coradas do que é costume, naquelas circunstâncias. E às cinco e meia da tarde eu era uma ciumenta orgulhosa e, de certo modo, pragmática.
No final da conversa absurdamente sincera, franca (todos os sinônimos mais!) e polida que deveria acabar em uma briga, que por sua vez deveria acabar em beijos, negações óbvias e oferecimentos crus, estávamos bem pelo que houve e pelo que não houve. E eu não era mais do que uma ciumentinha. Diminutivo mesmo. E o que mais me perturbava, passado todo aquele ataque histérico de mulherzinha, era não ter mais uma hora ou duas pra dormir de conchinha com o cara do controle remoto.

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