quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Sabia de cor e ainda sei

Quarta, entre dez e onze antes do meio-dia. Não preocupada, mas nem tão longe assim daquele comportamento absorto ao qual fui acometida no fim de tarde anterior, vesti as roupas e me aproximei do sino dos ventos da janela mais à esquerda entre as três imensas que o apartamento 506 possuía. Muita gente se aglomerava entrando e saindo das lojas daquela pseudo-metrópole às vésperas de natal. Passeando lá embaixo, nenhum conhecido aparente, e gente não muito bonita - também pudera, nada pode distinguir de muito belo uma mulher míope que observa a cinco andares de distância. E eu estava sem óculos mas, no todo, a vista era bem agradável: Uma pequena praça circundada por no mínimo três faixas de pedestre, três bancos de sentar e, mais ao fundo na paisagem, três bancos de pagar contas. Três. Embora eu tentasse fazer as associações necessárias para que algum lirismo se formasse em razão da repetição dos números na cena, pouco acontecia. E eu permanecia ali: Na precaução que herdei de meu pai a não deixar que nada me pegasse muito de surpresa sem que pudesse me defender à altura e naquela expressão boba de "corpo-fechado" que já ouvi minha mãe usar algumas vezes. A conversa da noite anterior, de que uma ida à padaria (ou ao mercado, ou a outro país, ou ao cinema, ou à loja de conveniência do posto de gasolina) pode mudar o rumo de uma vida, ainda ecoavam um pouco presentes demais. 
Eu não era de todo uma mulher precavida, mesmo porque o termo mulher nem caía muito bem para alguém que usa um sutiã do tamanho do meu. Mas em parte se podia dizer que eu reagia bem às provas de fogo - poucas e breves - a que já fui submetida. Coisa boba isso de provas de fogo. Mas é como viver e ter de escolher entre pizza ou hamburger, você sabe. De soslaio eu veria, acima de todas as outras obras, Aritmética, da Fernanda Young, sobre a pilha um pouco desorganizada. Autógrafo datado de 2004, quase uma relíquia. Não fiz mais que abri-lo na espera vã de encontrar conforto, como aqueles que abrem os livros sagrados de suas fés em qualquer página bem ao centro procurando uma espécie meio imaculada de prumo. Depois achei tudo aquilo muito patético e sentei na rede improvisada paralelamente à janela do meio, para ler como fazem as pessoas mais ou menos normais: Contracapa, nota da autora, dedicatória, primeira página de texto, depois segunda, depois terceira. Parei na página doze ou treze, porque encontrei uma frase que nem sabia que procurava. O trecho tinha uma "prosa poética" que eu gostaria de transcrever no todo, mas me falta a audácia de outrora - se é que nessa Literatura de hoje as prosas podem ser classificadas como poéticas - intercalado com dois poemas, de Lichtenstein e Schickele, que até então eu nem sabia existirem (eu acho, ao menos), e o trecho era mais ou menos compreensível, como devem ser os trechos de livro que se encontra milagrosamente por acaso. Dizia quase assim: "Sabia de cor e ainda sei. Sei que ela também sabia, e ainda sabe". Que lindo e que triste. Minhas narinas aspiraram um ar frio da fresta daquela grande janela para me recompor como se eu estivesse comendo oito pastilhas de Hall's preto ao mesmo tempo. Não estava. Pensei que algumas coisas se pode negar, outras se pode esconder, outras podem se perder. Não o que a gente sabe de cor. E, naquele momento, eu sabia pessoas de cor. Três ou quatro (deixamos em três para manter as coincidências). E ainda sei. Sei que também sabiam, e ainda sabem. Embora, quase sempre, esqueçam. As chaves giraram e devolvi o livro, bem rápido, pro lugar. Tem coisa que é assim mesmo. Confunde pra ficar na estante, desperta pra não desassossegar mais que uns dias.

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