quinta-feira, 20 de julho de 2023

Esse é pra você, Elisa.

Morávamos em um prédio cinza escuro de quatro andares que também não tinha elevador. Os degraus eram mais altos do que se espera que sejam os degraus quando se precisa subir vários. A única janela do meu quarto dava para o poço de ventilação, o que fazia com que tudo ao redor da minha cama de solteiro tubular cor de rosa claro, inclusos a cômoda que guardava os livros e as toalhas de banho da família, a escrivaninha e o meu armário pequeno que vivia desarrumado, revestido de pátina como era, também fosse meio úmido. Eu tinha treze anos e eu me lembro como lembro de poucas coisas do passado o quanto eu me senti apertada por aquelas paredes quando li uma mulher de mais de quarenta me dizer coisas horríveis por mensagem de texto no celular em defesa do coração partido do filho, que na época tinha dezoito. Eu remoí cada caractere daquela mensagem por horas até finalmente criar coragem de contar à mãe e pedir ajuda pra lidar com aquilo. Era uma das poucas coisas que eu não teria coragem de contar ao pai: Elisa me disse que eu era uma "putinha". E ainda me custa um pouco escrever essa palavra, eu que não tenho pudor nenhum no vocabulário hoje em dia. Porque era de uma baixeza tão grande e vilanesca uma adulta dizer aquilo a uma recém-não criança que a lembrança da sensação de ler aquela mensagem me repugna mais hoje, que compreendo a dimensão do que me foi feito, do que na época, enquanto a minha mãe limpava as minhas lágrimas. Minha mãe fez de conta que aquilo tinha, naquela hora, o valor que teria na minha vida. Mas me disse de um jeito muito franco que aquele episódio horrível só seria pequeno na minha história se todos os outros depois dele falassem mais alto. Se eu fosse honesta e justa. Se eu fosse uma boa pessoa. Se eu vencesse. Se eu acreditasse e me convencesse todos os dias sobre o que de bom eu era. Se eu desse o melhor de mim em cada coisa, até que o que as pessoas dissessem a respeito em situações como esta fizesse volume baixo, inaudível perto do que gritaria a minha reputação, a minha conduta e a minha história. O meu jeito de tratar as outras pessoas e os seus sentimentos. Textualmente, acho que as palavras foram algo como: tu não vais responder por mensagem, mas vais viver respondendo.
Aquele jeito de como fui ensinada a encarar aquilo me marcou para sempre. Não foram poucas as vezes, nos anos seguintes depois daquele sofrimento inteiro, em que eu me peguei vencendo na vida só para responder àquela ofensa da Elisa. E a cada vez que eu caía, era para não dar o gostinho à Elisa que eu me levantava. Como se o que me aconteceu de tão ruim tão injustamente me desse um sentido inteiramente novo. Como se cada coisa que me acontecesse de bom tivesse ares de premeditação meticulosa. Para responder com classe a uma mulher que tinha idade para ser minha mãe e se comportava como a adolescente que eu queria poder ser. Aquilo virou uma obsessão, como tantas que eu tive e tenho pela vida. Viver bem para calar a boca da Elisa talvez seja algo que, em alguma medida, guiou a minha vida e o meu modo de resolver as injustiças e me acompanha até hoje. Mesmo eu nunca mais a tendo visto ou ouvido falar o que anda fazendo. Eu acredito mesmo que, se eu voltasse à rua onde ela ainda mora e espiasse, à espreita, encontraria a Elisa ainda hoje fazendo mal a alguém, mais ou menos no mesmo modus operandi do que fez comigo. Em baixa classe, envergadura e frequência. É o registro mental indelével que ficou. Mas se eu a visse entrar pela porta, ou se eu batesse à porta ou palmas no portão e me viesse a Elisa num cerimonioso reencontro, acenasse, me olhasse dentro dos olhos para perguntar se eu vou bem, sem tocar em nenhum assunto e sem jamais ter alcançado as minhas desculpas, mesmo assim já não haveria mágoa viva e nem taquicardia, só um oco e uma cicatriz. A Elisa pavimentou em mim, por mal, a sua própria pequeneza. E com isso me fez gente grande. Os grandes sofrimentos nos constroem muito maiores do que são as pessoas que nos ferem tão profundamente.

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