domingo, 2 de julho de 2023

Amalgamada

Estive aqui milhares de vezes. Pressinto todas as quinas e corredores e ainda assim, ao não me reconhecer dentro destas paredes, parece terra estrangeira. Matei muitas versões de mim com tanta coragem para ver outras surgirem, mas esta paga as contas e por isso se recusa a ir embora. Volto aqui todo dia para ser praticamente a mesma. Minhas raízes abriram caminho entre as rodinhas dessa cadeira. Minha alma está amalgamada nesse lugar, com o perdão do quase palíndromo das sílabas embaralhadas. De trás pra frente, eu sinto o mesmo. Tem um pouco de mim no cheiro dos armários. Tem um lugar especial guardado entre as frestinhas desses ladrilhos pretos irregulares para pequenas lápides das minhas possibilidades de antes, que agora jazem na horizontal. Não tem meu nome na parede nem uma foto de decana emoldurada com cerimônia. Estou colada no reflexo de tudo que esse espelho já me ouviu pensar antes de respirar e entrar. Sentindo há muito a mesma ojeriza por aquela liga azul que foi perdendo a cor, o cheiro e a forma na tampa colada do lixeiro do banheiro. Pelo tom de cochicho. Pela necessidade de antever as piores possibilidades. Pela passivo-agressividade dos excessos. Pela exigência de gerir e dar retorno. Pelos defeitos e familiaridades. Tenho medo de um dia abaixar o tronco e olhar a moldura desse porta-retrato cafona me dando conta de que tenho a exata mesma cara de todas as pessoas do lugar onde eu nasci, envelhecida pela idade que tenho hoje. Não importa os lugares que tenha conhecido, o que tenha comido, quanto botox tenha feito ou quanto dinheiro tenha ganhado entre uma selfie e outra. Acho que enjoei de reclamar. Preciso mesmo de fôlego. Preciso parar de ser fundamentalmente a que digita, processa e aposenta. Sem ignorar tudo de bom que ser essa persona me trouxe e me traz, mas sem permitir que meu futuro me encontre de pernas cruzadas, tão profundamente burocrata, tecnocrata, competitiva, careta e reativa. Preciso repartir meu tempo com a minha sensibilidade. Preciso sentir mais os momentos que conversam comigo. Curtir a minha música. Descer os altos degraus de mármore para subir ao nível básico do encantamento. Encontrar meus quadros. Abstratos, que sejam. Encontrar a chave que reabrirá a oficina onde estiverem por pintar os meus próprios quadros. Combinar duas peças de roupa de brechó em vez de uma só. Olhar aquele violão e conseguir tocá-lo na lonjura de um braço, não apenas no imaginário, encurtando a distância entre a memória densa do que era mais lírico e o lirismo de agora. Preciso parar de repetir no automático os hábitos que me trazem, cedo ou tarde, ao mesmo lugar. Porque estive aqui milhares de vezes. Nesse momento de esquina em que enxergo dois horizontes refletidos e só um deles tem cores. Estive aqui milhares de vezes, de frente para esta porta onde tudo se abre e.

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