sexta-feira, 6 de maio de 2022

Não cheira bem

Nasci numa cidade que fedia e isso era sinônimo de prosperidade, porque o cheiro vinha do tratamento dos resíduos de fécula de mandioca das lagoas de uma multinacional. Isso sempre fez determinados bairros da minha terra natal serem quase asfixiantes. A empresa empregava muita gente até fechar. Quando fechou foi um deus-nos-acuda de desemprego. Era a maior fonte de arrecadação de tributos municipais. Mas era, também, a principal fonte de um aroma quase constante de peido, no seu entorno e além. Como um chorume de uma comida muito específica esquecida há muitos dias. Mandioca, talvez. Um fedor só. Tudo muito característico e ao mesmo tempo tenebrosamente familiar. Para alguns, era cheiro de dinheiro. Ou de sustento.

Tenho uma coisa com cheiros e isso me atormenta a vida toda. Não é por acaso que as pessoas dizem que algo não cheira bem quando se supõe que há algo errado, mas não se consegue saber ainda o quê. Uma metáfora quase literal para dizer que um mau odor é uma coisa que impregna o ambiente de modo a não nos deixar concentrar em outra coisa quando, talvez, se soubéssemos desde o princípio e exatamente de onde o cheiro vem, ainda assim não saberíamos tão bem assim o que fazer a respeito. Titubearíamos, em nome do pão nosso de cada dia. Ou não teríamos estômago de revirar esse lixo de dias que agora escorre.

E embora a gente olhe, objetivamente, pra todos os lados, às vezes não sabe dizer o que há. Demora a encontrar o foco. Mas ele está lá. E se o primeiro contato com um cheiro ruim não nos deixa esquecer que algo está sujo, podre e vai mal ou precisa de atenção é porque a gente sabe ou intui, pelo faro. Meio bicho. Num segundo momento, porém, já é como se os pulmões estivessem mais acostumados com as partículas indigestas espalhadas pelo ar. Se for todo dia então, nem se fala.

Porque cheiro ruim dessensibiliza o olfato, sempre tive medo de acostumar. Sempre tive medo que as máscaras de segurança virassem adornos. Medo de precisar fechar os olhos mais que as narinas. Acho que, justamente porque sempre tive um medo muito profundo de feder, sempre estive muito atenta às minhas companhias. Com que cheiro sentiriam de mim à distância se eu andasse com quem não cheirava bem. Aquela preocupação social de ser contaminada pela impressão de uma cagada que pudesse vir a feder e eu não cometi.

Compreendi só adulta que merdas acontecem. A qualquer um. E que merdas fedem. Fedem muito. Algumas mais que outras. Mais que uma lagoa inteira de dejetos de amido. Compreendi, não sem torcer o nariz, que ninguém está escape de estar próximo do que fede muito, como esse cheiro do bairro Liberdade nos arredores do ginásio nos anos 2000 que estou sentindo agora e ainda assim precise ou deseje ou não veja nenhum horizonte de ar mais puro do que permanecer. Tentando refinar o olfato para as notas de prosperidade. Prendendo a respiração o quanto puder.

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