quinta-feira, 18 de outubro de 2018

Cena de uma tomada só

Estou correndo no escuro, ofegante, cena de uma tomada só, olhando pra trás de pouco em pouco. Tenho mais medo de olhar pra trás do que de seguir em frente a esmo nesta velocidade. Com certeza algo lá atrás me persegue. Eu sou a mocinha burra de um suspense ruim, que escolhe sempre o caminho do beco. Ela luta contra o perigo do jeito mais patético possível: primeiro, fugindo. Pinga uma gota de suor na têmpora, a bochecha cora e falta o ar. Tosse. Tropeça. Levanta e corre, agora mais lenta. Ela grita com uma voz fina irritante e horrorizada, num idioma inaudível, como se fosse adiantar. E precisa desacelerar pra não cair de exaustão, eu sei, mas agora acostumou a correr pra não ser alcançada. Nem que seja para o beco. Correndo, quase não pensa. Sente câimbras e um cansaço, mas não pensa. E ela corre, teimosa, todo dia e tarde da noite. E corre na rua e na esteira, pra ganhar condicionamento físico. Corre de mil maneiras que não consegue explicar. Corre em círculos. De moto. Dentro do globo da morte de um circo mequetrefe. Acelerando e fazendo barulho com a descarga aberta. O motor ronca altíssimo. Wrong. Wrooooong. Acelera de novo. Parece esporte. Mas chega sempre a hora em que alguém ou algo a alcança. E ela confronta de perto a patifaria de se defender com algum instrumento imbecil como um cotonete, uma pantufa ou, para melhorar a metáfora, um pedaço de gelo. O suspense é a triste espera por mais. Viver um suspense constante é desejar um susto pior do que o do silêncio tranquilo da própria companhia. E adiar o confronto imediato, ainda em pleno vigor físico e mental, com o vazio por baixo do capuz.

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