segunda-feira, 5 de março de 2018

Uma coisa prosaica

Ela fuma usando um grampo de roupas. Acho que não gosta do cheiro, tanto quanto eu. Só da primeira tragada. A que requer mais coragem. Acho que não gosta da ideia das unhas amarelarem, porque aquela do pé já dá trabalho que chega. Fumar num prendedor dá a ela um certo distanciamento em relação à nicotina. Como quando ela abraça para cumprimentar. Evita que todo o corpo toque, exceto pelo momento em que, queimando, a cinza se aproxima demais do filtro. Então é inevitável: ela põe o prendedor um pouquinho mais para dentro, de um jeito que ele quase toca a ponta do nariz. Uma coisa prosaica. De verdade. Só vendo para entender. E fuma os últimos dois suspiros do décimo oitavo cigarro da noite, aproveitando a ausência da mais nova, enquanto me diz coisas sobre o caminho para a evolução espiritual feminina com ares de anciã. Abre o grampo, solta o cigarro que apaga na borda do copo de aço inox com um barulhinho peculiar. Solta também a fumaça. Meio para cima, meio para o lado. Solta. E recomeça. Fala da nossa longa linhagem de mulheres sábias. E eu concordo com a constatação, sem que a gente se envaideça disso. Acho que fuma para cumprir o estereótipo de escritora, conseguindo assim escrever a palavra sovaco num contexto, sem corar de vergonha. Enquanto fuma, ela ensina que não se diz a um homem que queria que ele isto ou aquilo, porque no fim eles fazem sempre o que querem e a gente passa por boba. Nós já passamos por bobas que chega. Ela finge já ter cansado. Aconselha a uma porção de coisas que já não consigo repetir, porque estive concentrada demais em somente vê-la fumando. Assinto com a cabeça sem entender uma única palavra da última metáfora. Tentando dar àquilo algum significado. E então me concentro de novo. Ensaiamos caladas uma frase inteligente que contenha a palavra "cerzidas", depois de ler e ouvir Cortázar. Não sai. Não com força o suficiente para que se escreva ou diga em voz alta. E nos reconhecemos uma na outra de um jeito que me assusta um pouco, porque eu não a compreendo de todo, tanto quanto não me compreendo. Lembrando assim, pareceremos igualmente malucas no imaginário. Como talvez sejamos. As coisas que ela viveu sozinha podem ser imaginadas e passadas para frente um pouco diferente do que foram. As que vivi também. Foi uma experiência ou a imaginação expandindo-se para o conto daquele causo mais adiante? Ela só escreve sobre o que viveu, talvez porque isto permita que viva de um jeito mais lírico. Lúdico até. Ela só escreve para alguém soltar uma gargalhada trinta anos depois. Até que mude de ideia. Saber que viver possibilitará que escreva a respeito faz com que seja um pouco personagem de si mesma. O que eu faria se eu fosse eu? Ela nem gosta do que escrevo. Acha que eu soo um pouco pedante. No que tem toda razão. Mas é que ela não viveu o que escrevo com os meus olhos, como vê-la fumar e parir vinte páginas numa manhã, sem dó nem dor. Ela esquece que falamos dos homens e das coisas da melhor forma que conseguimos, para tentar entender a experiência antes que nos escape. Antes que venha o próximo e ela tenha de aprender tudo de novo, do zero. Igualzinha a mim. Como se a paixão resetasse os progressos individuais e a gincana recomeçasse. Até que a gente finalmente aprenda e não precise vir de novo para esta terra sem sermos compreendidas. Prendendo cigarros em grampos. Fazendo e refazendo nossos trechos, até que nos venha a lição final, acima de todas as outras. Ela fumando, com toda a certeza. Muito provavelmente a dez horas de léguas submarinas de distância. E eu lembrando de que gostaria de compartilhar este aprendizado de perto com ela, nem que estivesse fumando num grampo de roupas. De nós, quem aprender primeiro com certeza escreverá para ensinar à outra.

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