segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

Je ne sais quoi

Baixa o dedo do meio
E vê se ergue esse tom de voz
pra falar comigo

Com quem você sabe que está falando?
Se estou prestes a morder
de tanta raiva
de vontade
de nem ficar perto
E também não estar
-hiper-re-agindo-

Ao final agradecer
Imensamente 
Os incentivos
Daquela premonição antiga

Minha língua é marcada
de tanto ficar dentro da boca

quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Eco [32]

Do fundo de algum lugar desta noite clara de lua cheia sirena o alarme de um carro, inconveniente e impossível de ignorar, como se houvesse um bicho pequeno e esquivo ativando o sensor de movimento a cada dois minutos. 
Desperto, eu me dou conta de que esqueci duas verdades não ditas bem no teu arco do cupido, Laura. Eu as contorno com fantasia lembrando que ainda estarão lá pela manhã, depois do banho, quando rascunhares as bordas da tua boca de dizer coisas inimaginadas com lápis e batom.
Tenho medo de morrer porque tenho medo de nunca mais poder me perder apontando o inferno ou o céu da tua boca com o indicador tocando naquela parte demasiado macia e granulosa onde começam os teus lábios, tu inteira mucosa, epitelial, conjuntiva como uma oração para me receber. Temo nunca mais poder afundar estes mesmos dedos na tua carne tentando alcançar a derme enquanto me dou conta de que aqui, recostado nestes travesseiros te intuindo dormir, pareço um pouco com um inseto de verão. Circundando hipnotizado, atraído pelo irresistível, quase cego, quase zonzo, tua luz artificial que brilha diuturna no meu imaginário, basta um interruptor (embutido, escondido, acionado - pelo alarme deste carro).

Alcautraz [5]

Bem-vindos ao consagrado e às vezes revelador, outras não muito, tour pelo Caulabouço da mansão da minha caubeça. Com as narinas ainda impregnadas pelo cheiro do Trânsito (há, aliás, quem diga que o mau cheiro em si tem ficha criminal suficiente para que também fosse trancafiado neste ambiente imundo, se lhe fosse possível aprisionar com estas mesmas grades), alcançamos os aposentos de outra figura bastante célebre desta instituição prisional.
Recolhido em flagrante em meados de 2015 com algemas feitas de papel, aos gritos hollywoodianos de protesto meritíssimo, impende destacar que está aí o Advogar Para Parente. Em que pese Advogar Para Parente fizesse parte de uma quadrilha amplamente conhecida, lamentavelmente não foi toda caupturada à época: era composta por ele, Advogar No Interior, Advogar Num Grande Escritório, Advogar No Fim do Ano, Advogar Em Massa Querendo Qualidade de Boutique e o chefe do bando, Advogar Por Si Só. Todos estes absolvidos, porque subornaram a juíza da causa, hoje transitam livremente como se fossem imprescindíveis à manutenção da ordem e indispensáveis à administração da justiça. Sobrou para o Advogar Para Parente, o que tinha mais escrúpulos, constrangido por seus princípios básicos de nunca dizer não e ser sempre o mais solícito que conseguia, declarar-se culpado e cumprir as condenas de todos somadas, todas juntas. Prisão perpétua. Seu celular ainda toca com mensagens de pedidos de ajuda - sim, ele tem um celular, mas a administração finge que não sabe e ainda lhe concede visitas íntimas pelo menos um final de semana por mês, e em todo feriado religioso. Sendo muito eloquente, naturalmente obteve êxito e foi agraciado com muitos admiradores. Romarias insurgentes entoam à frente do Caustelo o bordão da claque, uma reflexão social profunda, atemporal e perene, da qual nem a prisão lhe privou: "Como está o meu processo? Como está o meu processo? Como está o meu processo?". Advogar Para Parente ouve esta espécie de toada de apoio dos populares entrando pelas frestas e sorri amarelo no canto de sua cela. Encolhido, ele acredita que merece. Do temor reverencial de servir aos menos favorecidos ele veio, à família ele inevitavelmente retorna, em looping.
Quase na mesma época, imbuída a gerência da intenção de dar tratamento igual aos polos diametralmente opostos, ocorreu o encaurceramento dO Suposto Saber: um anjo decaído que integra a facção rival do Advogar Para Parente. Isento, neutro e, ao que se sabe, com superpoderes terapêuticos hipnóticos e viciantes, O Suposto Saber finge ser indispensável para todo adulto perturbado até que se consolidem, dia a dia, muitas novas pirâmides de seu esquema. Sussurra teorias junguianas sem citar a fonte. Ouve muito, pergunta amenidades e profundidades enquanto oferece um copo de água e uma caixa de lenços, comporta-se até que bem aqui no Caulabouço. Apropria-se das melhores fofocas, do conhecimento comum (dito em que tom de voz?), da filosofia e dos livros de psicanálise, como uma esponja. Depois, ao que se sabe, pode regurgitar uma gosma verde e letal que gruda na cabeça da vítima, e que precede um golpe mortal como katanas que sua facção apelidou de corte lacaniano. Tomem cuidado. Estudos já realizados revelam que, com olhar inquisidor, ele pode cruzar as pernas como uma senhora de meia-idade com os cabelos recém pintados, o seu colar de pérolas, a roupa toda combinando, um relógio que só mostra as horas para si mesmo e um espelho cognitivo-comportamental apontado para quem chega. O Suposto Saber é uma Medusa ao contrário: olhá-lo despetrifica. O simples contato com O Suposto Saber pode acelerar os pensamentos, reposicionar o que era tido como certo, conduzir aos insights mais geniais - daí a sensação de dependência.
A ponto de esquecermos que, quando a visita acaba, lá longe, das portas deste lugar para fora, é necessário obrar como quem esquece que há tantas jaulas neste subsolo, as ocupadas e as outras, ainda disponíveis a preencher.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

Patadas


Sem chegar é que se descobre
Que a volta pode ser mais longa que a ida.
Sim, penso comigo, pode até ter sobrado
uma gota
- não, gota não -
um grão seco
de areia
de fé
permanecida
embaixo das patas
que ainda cruzam este deserto 
sempre tão quente
e inexpugnável
da razão
Para pedir: reze em dobro
por nós.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

Flamengos 6:12

No estatuto da minha vida
Há um primeiro artigo que diz
TUDO É PERMITIDO
Tudo posso poder
Na letra miúda escrito:
só que querer é dificílimo

O espaço de querer
E o ímpeto
Undívago
Antes até de arcar com a consequência
Plena de coragem

Dificílimo

E então depois de querer agarrar-se no querer
Para que não escape
Para que dure e valha
a iniciativa da escolha

E depois não ocorra de só querer
outra coisa
Vaga e etérea
Que não a tida.

Durar no querer

terça-feira, 3 de dezembro de 2024

Too cheap

Quem vê solar
O alto claro deste teto
Às vezes se retrai
Com as seis antenas e patas
Finíssimas
Pronunciadas por detrás
Do registro do chuveiro
Manhã e semana passada

Essa barata agora mora aí?
Ela se guarda em carapuça de metal
Por trás de sua carapaça habitual?
Como se enfia sem sair, afinal?

Ela não quer saber
Se quitei à vista
Ou financiei com juros
Essa barata não quer nem saber
A quem pertence a TV
Como serão as escrituras
Quanto eu queria acumular antes dos 30
Ou quantos mil milhões
ainda me falta 
pra largar tudo e ir morar num sítio
viver de renda.
Essa barata vulgar
Não está nem aí
Mesmo estando muito aí
Para a hora da manhã;
A fatura do cartão;
Ou o que custa caro
Só quer saber
De fingir que sai e volta
Pelo cano
Fazendo-me inverter
A lógica e o prumo
De todo banho

sábado, 30 de novembro de 2024

Cativo [11]

Viver junto é um ato de coragem. Na prática, os atos de coragem são menos melífluos do que nos romances por escrito. Se os casamentos tivessem um Globo Repórter só para eles, poderíamos colaborar contando como o nosso vive e do que tem se alimentado: tempo e espaço. O tempo para os detritos e sedimentos se assentarem de novo no fundo de nós, subvertendo com calma a agitação confusa de não saber. E o espaço de nos reinventarmos para além de sermos um casal. Tática e estratégia de um teatro mágico: “Ser mais eu contigo / Para que me queiras”.
Será que um dia seremos tragados pelo excesso de massa como o buraco negro de nossos estômagos ansiosos pelo hambúrguer do domingo? Saudável, sim, quero ter saúde, mas o que é afinal que isso significa? Saudável como o alface murcho, rejeitado dentro da marmita quente e rápida da semana, pedido só pra cumprir tabela? Não. Prefiro enfiado no pão carne e queijo para umedecer o lanche ou fresco e picado, cheio de molhos e toppings. Quero lembrar que o nosso é um amor saudável escolhido a dedo no meio de um buffet gourmet, jamais esquálido. E quando algo indigesto nos voltar do estômago (eu sei, morar comigo é ter que lidar com nata demais), que a gente encontre de novo magnésias de esquecimento no fundo da bolsa, com gosto de uma cura amena que abrande as queimações de sermos dois inteiros aprendendo - ainda, sempre - a conviver, conversar e digerir.
Vou bendizer os dias de almoço e janta minimalista como a nossa decoração com o máximo de personalidade, amor. Estou sussurrando uma promessa daqui pra lá na tua boca adormecida tão perto da minha com um ar pesado: posso desaparecer? Ser sugada. Te invadir. Me misturar. Desaparecer. Não morrer, não. Não separar, não comprar cigarros e nunca mais voltar. Quero desaparecer um pouco. De novo. Dentro de ti. Nesse vão oco e morno que se estabelece a cada vez que abro a boca com um hálito de fome de qualquer coisa. Desaparecer. Um peso inteiro dos significados desta palavra que anuncia que, furtivamente como aconteceu pouco mais de quatro anos atrás, algo também pode sumir. Desaparecer um pouco - mas reaparecer do teu outro lado, brincadeira boba de criança que cutuca o ombro contrário já tendo atravessado por trás da vista. Já que viver junto é um ato de coragem. E de confiança. E de humor. Só posso te prometer para os próximos quatro anos ser sempre um pouco mais corajosa e um pouco mais confiável. E bem humorada. Mignon com Alfredo ou mel com queijo, não importa. Somos uma combinação improvável. Que apetece o meu apetite. Dia depois de dia me comprometo a aprender a me saciar, descansar e contemplar. Ao teu lado, mas não só: de novo de frente pra ti.

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Alcautraz [4]

Bem-vindos ao nem sempre animado tour pelo Caulabouço da mansão da minha caubeça. Depois das tonturas causadas pela aproximação com a cela de Dona Redoma, o convite para visitar as masmorras vem agora acompanhado da exigência de menos pressa e de mais contexto. Visitas mais exclusivas, feitas de uma contemplação mastigada para facilitar a digestão. Para que os organismos se habituem com leveza aos piores perigos e não sucumbam a eles. Qualquer preso daqui em diante é bastante caupaz de dementar um punhado grande de (ou toda a) energia que ilumina e dá força ao Caustelo ao menor deslize.
Todos eles, mas especialmente os seguintes, deste ponto até o fundo, esperam ávidos por uma brecha que lhes facilite a fuga. Teme-se, inclusive, que alguns deles possam ser caupazes de uma espécie de transfusão de almas com o visitante pouco alerta ou, na pior hipótese, inconsciente. Aconselha-se, portanto, que os senhores cauminhem em silêncio. Sem dar-lhes muita prosa, sem muito riso à toa, sem muita deferência. Ouçam bem e acreditem. Perguntas ao final. Por precaução, vistam logo as máscauras de gás e evitem a paralisação completa de seus sistemas.
O barulho de motor que vem da cela com aviso luminoso na parede, um cone na frente e esta fita listrada de preto e amarelo anunciando uma poça de sangue escorrendo por baixo da porta é do Trânsito. Um serial killer. Muito muito muito mau e outro tanto necessário, o Trânsito oferece o risco sempre iminente de uma colisão, um choque, um atropelamento, um perigo fatal: cachorro surdo, criança atrás de bola, motoqueiro na contramão, idosa de bengala, ciclista em cima da pista, camionete no centro da cidade, baliza com gente olhando, caminhoneiro virado de rebite, notificação no celular, arrombado que não dá seta, cruzamento no semáforo, pista recém molhada de chuva, serra sem sinal, GPS mandando pra rua sem saída, um grave problema mecânico ou uma ultrapassagem na curva. Nunca se sabe. Não há cautela nem direção defensiva suficientes para afastar os horrores do Trânsito, suspeitado, necessariamente sempre à espreita.
Quando criança, o Trânsito matava crianças que andavam de bicicleta morro abaixo no bairro. Nunca via nenhuma dando marcha à ré, sempre lhe faltavam os freios, nunca lhe eram confiáveis os retrovisores. O Trânsito sempre andou pelas sombras dos pontos cegos. Quando adolescente, foi vítima de suas próprias necessidades de locomover-se - para o lazer, pior. Nos ônibus, o Trânsito se escondia embaixo do assento de qualquer dos bancos do meio para a frente - do lado do motorista, pior. O Trânsito já era perigoso com gente amiga - na carona de desconhecido, pior. O Trânsito nos feriados ou fins de semana sempre envolvia muita bebida e, quanto mais bebida, menor o reflexo - e quanto menor o reflexo, pior. Foi assim que o Trânsito se tornou um dos piores de todos aqui.
Quando foi trazido para cá, já tinha caurro próprio. Fingiu que não tinha mais perigo em arranhar ou colidir um veículo que não fosse seu e, minimamente diminuídas suas forças, foi finalmente detido. Mas essa máscaura não lhes foi oferecida à toa. Ainda emana do Trânsito um vapor barato e inebriante de combustível, como o que se sente nos postos de gasolina. Quem inala até imagina, mas se deixa seduzir pelo ar envenenado das promessas de chegar mais rápido e mais longe. O Trânsito tem um cheiro forte, muito característico, que mistura pré e pós combustão. Como é necessário atravessar esta cela para ir adiante, na memória olfativa do visitante é este cheiro que exala de todos os caundenados mais antigos. Parece com liberdade.
Mas olhem bem ao redor, senhores. Nada parece menos com liberdade do que este Caulabouço.

quarta-feira, 20 de novembro de 2024

Bege opaco

Morro de medo de embotar todinha ou de desbotar. Quando eu crescer mais, quero ser muito mais interessante. Rechaçar e capturar olhares de admiração ou assombro, nunca indiferença. Sacudir o tapete bege opaco de uma madame e estar, empoeirada, embaixo dele, varrida para longe dos tons pastéis cuja sobriedade é ardilosa. A vida só me vale se for vívida. O que tende a ser pelo menos um pouco insuportável de vez em quando. Compele-me a conservar um jeito anárquico de estender as roupas no varal. Acender um cigarro ou outro - só sei fumar pouco e com o pé deitado sobre o joelho. E apagar um porre ou outro - até que adquira a cirrose ou a tolerância de um fígado que processe todas as tantas lacunas de calmaria de que são feitas as histórias. Quebro essa taça em ondas de som de um riso estridente (caótico, anedótico) que grita como se avisasse para que eu nunca nunca enlouqueça ou me satisfaça calada, tediosa, neurótica. Faço voltarem secos ao porão dos meus dutos lacrimais um funeral metafórico ou mais. E hei de vez em quando tornar o implícito explícito. Como se da boca não me estivesse saindo uma atrocidade, um arrependimento ou uma amarra. Armo, então, o salseiro que eu quero. Visto roxo com amarelo. Um decote profundo. Eu pago de louca se a dívida houver sido contraída em marasmos. São todos jeitos de pintar arabescos muito coloridos na tela às vezes pálida de mim.

terça-feira, 12 de novembro de 2024

Des mots

Acordei perturbada de sonhar que pedalava morro acima e morro abaixo a barra-circular roxa e sem adesivos da minha adolescência para um lugar proibido em que se chegava rápido porque, na hora de voltar, os pneus estavam furados. Precisava de carona. Sozinha não conseguia. As palavras haviam todas sumido das placas de retorno, que agora não indicavam nada. Roí as unhas tão rápido quanto se fosse a primeira tarefa do dia. Roí as unhas tão fundo que sangrei na espera do lado da estrada. Roí as unhas tão na carne que parecia roer a carne. Placas para lugar nenhum. Nas quais poderia antes estar escrito o nome próprio da enfermeira que primeiro elogiou a veia azul que salta grossa do dorso da minha mão. Ou um conselho: defina-se menos pelo seu trabalho. Ou um ditado impopular: onde se ganha o pão não se escreve os livros. Ou, na encruzilhada: quem é Borges na fila do Y? Ou, para alertar do radar de velocidade: invejas que nunca foram. Grafitado o desenho de um dedo enfiado num copo de água fervendo. A pata de um coelho. Um laço enterrado na grama e, ao lado dele, um pé de laços. Bittersweet. Furta-cor. A Torre de Sauron. Um aviso de obra de riosulense. Uma cabeça girando feito centrífuga. Este espaço gasto no teclado em que se bate repetidamente o canto do polegar e se poderia também, tranquilamente, bater a cabeça. Até sangrar um sorriso tímido que não mostra os dentes. Placas para lugar nenhum. A caminho de um lugar onde nunca mais se chega. Mas do qual, enfim, nunca se saiu. Quando acordei as palavras voltaram


a dizer




                                        pare.

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

Alcautraz [3]

Bem-vindos ao já tradicional tour pelo Caulabouço da mansão da minha caubeça. Vamos andando um pouco mais depressa, chop-chop, acelerem o passo. Vou começar as explicações de onde paramos da última vez.
Na cela em frente do Aproveitador, repousa nesse colchonete fino o Cidadão Encostado. O Cidadão Encostado é um bicho-papão com o qual fui assustada desde menina, e que se provou muito pior do que as piores estórias que me contaram. Ele nunca trabalhava e, quando acontecia de ocorrer, era com muita má vontade. Estava sempre indisposto, morto de preguiça, exaurido de nascença. Transmorfo e coberto com capuz, nunca se vê a sua face. De modo que pode ter a cara de um pobre sem determinação (como nas estórias), ou a de um rico que se esgueire pelos barrancos da própria riqueza (descobri depois), ou também a de quem lhe vê enquanto fantasia com a Mega-Sena (nunca se sabe).
Faz fofoca, grade a grade, com um outro exemplar de semelhante envergadura, excepcionalmente aprisionado dentro de uma caixa de fósforos, para otimizar espaço: O Pequeno Poderoso. Seu vulgo naturalmente foi cunhado à imagem e semelhança dO Pequeno Príncipe, mas não é bem desta realidade mágica que saiu a personagem. A aventura que apraz aO Pequeno Poderoso não é cativar rosas e raposas ou fazer viagens interplanetárias, mas sim mandar. Exercer o domínio de seu território, menor que seja ele. Aliás, quanto menor pior. O Pequeno Poderoso é minúsculo em sua pequeneza, do tamanho de metade de uma pulga. Adora ser o detentor da informação, adora dizer: não!, adora insistir que faltou um documentozinho de nada. Gosta de negar passagem, de não permitir o acesso, de exigir mais um carimbo, de mandar refazer. Se recusa a permitir o que recomendaria o bom senso pelo simples prazer de fantasiar com uma grandeza das atribuições que lhe foram conferidas.
No 2x2 seguinte, o Legpress-que-desaba. Como seu batismo sugere, trata-se da máquina em 45º que deixa o corpo - embora refém - tonificado da cintura para baixo. Sorrateiro, está sempre prestes a deixar este mesmo segmento corporal totalmente sem movimentos por um dano vertebral irreversível. É um perigo iminente do qual pouca gente se dava conta, e só foi aprisionado aqui depois de ser televisionado. Sua presença calada (é pior em movimento) dá uma espécie de calafrio quente. Um calaquente. Suado de academia, ainda por cima. Sentiram? Por favor, firmem bem as pernas em sua presença e jamais afrouxem um segundo perto dele. Quanto mais se anda por estes corredores, senhores, mais se está suscetível aos mistérios escondidos de cada um de seus prisioneiros.
O Legpress-que-desaba faz parede-meia com a cela da nêmesis do exercício físico: a Paneladepressão. Às vezes no cotidiano do Caustelo se engendra um megabanquete e, sem notar, volta-se aqui para buscá-la, levando-a para a cozinha, mesmo sem entender muito bem o seu funcionamento e tendo-se ciência de que está sempre prestes a explodir. Paneladepressão cozinha em lágrimas e fogo lento o sabor de uma melancolia que amolece fácil e se sente na boca com a textura da fumaça que lhe escapa pela válvula da tampa. Foi enclausurada cometendo delitos coordenados com uma prima, a Colherdeansiedade. Esta, porém, escapou da caustódia no primeiro mês e vive num quarto espaçoso e confortável nas gavetas dos andares aí de cima, sob o álibi de que é capaz de ajudar na produtividade. Parecem um pouco fisicamente, na matéria de que são feitas, mas variam na contenção de mililitros. Os efeitos de seus poderes são diversos. A periculosidade da Paneladepressão, ao que se conta, é muito maior.
Mais adiante no corredor, à direita, vemos Mau Humor de Fome. Que por sua vez não tem gênero. Aparenta ser apenas um estômago murcho, mas é detentor de toda a ira que pode caber na mansão da minha caubeça. Mau Humor de Fome some umas três vezes ao dia e aparata em cada canto da própria cela sempre que lhe negligenciam demais. Não é difícil combater, tal qual se faz a um bebê, mas demorou que se descobrisse o seu contrafeitiço, também tal qual se faz a um bebê: só fica inofensive quando lhe dão alimento. Quando assume a forma do Buchinho Cheio, não há mais o que temer.
Por falar nisso, estamos chegando à cela da Dona Redoma. Muito magra e asseada, arqueada como uma bruxa, sorridente como uma fada, veste um xale sobre os ombros feito de pano muito quente. A Dona Redoma tem um talento especialíssimo: fazer de conta que o que lhe desagrada não aconteceu. Não fala a respeito até que quem está ao redor chegue a duvidar da própria sanidade. Justo por tais aptidões e influência na psique alheia, foi transferida para cá de seu asilo breve em Arkhaum com recomendações de que se mantivesse a segurança máxima. Descende de uma longa linhagem de protetores de reputações. É ultrapreocupada, sobretudo, com o que os outros pensarão do que se diz e faz nas salas do Caustelo. A preocupação é tanta que chega a se estender ao que se faz aqui embaixo. De modo que ela é a mais contrariada de todos os presos com o inventário que estamos fazendo e com estas visitas guiadas, que sempre dão a conhecer nuances, verdades escondidas e desconfortos (segundo ela, vergonhosos, segundo ela, muito mais do que o aceitável em qualquer Caulabouço). Se dependesse da Dona Redoma, tudo aqui ficaria reprimido: sem conhecimento público, sem a luz do sol, sem rótulo, sem o constrangimento das confissões e - especialmente - sem o risco das maledicências. Provoca em quem se aproxima dela um remorso incontornável e paralisante.
Chegar perto me deu vertigem. Meia volta, volver.

segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Desilusão

Queria ser bailarina. Se tivesse podido escolher, talvez houvesse usado collants e sapatilhas para viver muito mais do que parido e ensinado. Os cinco filhos que gerei, os netos que vieram depois e ajudei ativamente a criar, os afilhados que nos deram a batizar e os alunos a quem dei a conhecer e a disciplina. Guardam em si partículas minhas que, de tão embaralhadas, agora quase se dissolvem. A todos distribuí generosas parcelas de minha alegria vivaz, mas também de meu tímido ressentimento por ter nascido em certa condição de minha época.
Nasci pobre e nobre. E mulher.
Estudei. Rezo muito. Aprendi quase tudo que eu sei com a escassez órfã do Colégio. A ter bons modos. A ler. A ser cordial. A regressar ao interior daqueles velhos hábitos de nosso tempo sem saber que voltava destinada às coincidências do estudo e das escolhas que em toda a minha vida dali por diante não pareceram mais exatamente escolhas, mas sentenças que me foram dadas a cumprir. E eu cumpri bem. O melhor que posso.
Não houvesse sido eu a primogênita, teria viajado o mundo: conhecido a Itália, minha nossa!, sobretudo a minha amada Itália. Para tomar vinhos ainda melhores do que os que fazia Papai e me assombrar sorridente com todas as belezas. A elas responder no dialeto que me ensinaram em casa. Queria ter entendido antes que podia subverter a ordem das coisas que me foram oferecidas como se fossem dádivas. Que podia ficar em meia ponta. Partir para longe, estendida em pose. Viver aventuras. Ter e contar, também eu, novidades de encher os olhos daquela minha irmã. Distribuir em público pliés delicados e graciosos em vez de me curvar ao que me esperava: um casamento em estado bruto. Não sei quanto mais de prazer e contentamento com a vida teria se tivesse sabido que o sexo não é sórdido e os homens não são necessariamente sujos.
Não me entenda mal, eu sou muito feliz. Eu só não fui bailarina. Disso tenho certeza. E se olho à frente agora há muito menos do que o que já ficou pra trás. O que já foi faz coreografia dentro da minha cabeça. Primeiro foge para a coxia, depois o fato me volta num giro. Rodopia. Recordo sem muita linearidade se almocei ou se devo cozer o almoço, embora ainda queira visitar aquela minha amiga. Que já morreu? Como assim, morreu? Tenho a impressão de que essa informação me é novidade. Não me contaram uma porção de coisas e, por alguma razão, saber delas me chateia mais do que anima, porque me olham como se eu já devesse saber. Mais uma das minhas obrigações.
Prefiro digerir calada. É o tempo de que, deitada aqui, eu me pergunte se a pele lisa e clara que me cobre a barriga e a parte do peito que nunca vê o sol também poderia cobrir, alva, o meu corpo inteiro, se eu tivesse sido bailarina. Meus braços teriam a pele fina e macia? O rosto menos manchado. Foi sempre no quintal escaldante do meio-dia que me encontrei com meus pensamentos e sonhos, agora um tanto distantes. 
De dentro dos teatros, em cima dos palcos, prestes à plateia e às palmas, eu teria qualquer espécie de saudade de enfiar minhas mãos neste solo da terra escura onde me criei? Será que eu sentiria alguma falta de aguar as plantas com o regador verde, se não as tivesse, da minha máquina de costura, se ela nunca tivesse sido vermelha, de arrancar as ervas, se pelo meio não crescessem daninhas, de plantar filhas vivas para agora colher estes cuidados em revezamento? Fazem, sim, o melhor que podem. Muito me orgulham. Quase me escapa que divirjam tanto entre si e tentem controlar meus hábitos e até as economias. O que eu certamente não admito, se me dão a saber.
E por que agora me olha com espanto essa cunhada a quem de bom grado mostro minhas artes recentes e os pensamentos que escrevi no verso? Volto aqui em seguida para dar-lhe a chance de reagir melhor. E depois outra vez. E depois mais outra. Quatro vezes ou mais, num ciclo que se repete invisível misturado nas veias que carregam o sangue inescapável de minha família, e se entrelaçam com os meus nervos, que por sua vez fazem dança no meu cérebro. De tanto viver
envelhecer
e demenciar
quase sem lembrar
de que um dia haveremos todos de morrer.

Só sei que nunca fui bailarina. A juventude não chegou a me dar uma ilusão verossímil de que poderia tudo, mas a velhice ainda assim me desilude
até me esquecer
até
de tudo que não pude.

sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Azul com marrom

O menino brincando sozinho, chutando uma bola contra um muro. A força com que o muro lhe devolve a sua própria força. No tempo do possível, educado, ele recolhe a bola pra que o carro passe, sabedor dos perigos do mais forte. Ferragens vidros e rodas contra menino, os ossos e a bola. Um pouco de ternura. Outro de comiseração. Na rádio, Ney Matogrosso cantando o que o professor da faculdade cantarolava pela primeira vez na frente daqueles slides quinze anos atrás: mirem-se no exemplo / daquelas mulheres / de Atenas.

Um dia haveremos de saber como se dá a evocação futura de um momento que parecia trivial. Este arranjo improvável de não-amnésias, até que a memória nos falhe.

Quando em vez os portais da cabeça se abrem para que determinadas coisas entrem e fiquem. E depois voltem. Noutras elas batem no muro do cotidiano repetido de outro dia, só mais uma semana.

Enquanto vive, a gente nunca sabe que está vivendo uma coisa à toa da qual vai se lembrar pelo resto da vida.

domingo, 27 de outubro de 2024

Cativo [10]

Lamento informar que antes essas fatias de queijo velho vão esverdear de vez do que voltarão a ser moles. Claro que eu também detesto desperdiçar comida, não é disso que se trata. Você devia agradecer pelo meu pragmatismo em não deixar nada ficar podre. É o mesmo sangue frio com que eu me rebelo em causa própria, realizo que os panos de louça não são lavados há três meses, alimento com antecipação a lista de mercado e troco as toalhas de banho. Se disser que eu também procrastino eu vou mentir que é mentira. Aproveita e marca logo aquele dentista. Somadas todas as reclamações de influência na piora dos hábitos de higiene bucal dava tempo até de tratar teu canal. Concordamos: não existe megera no masculino. Não que eu seja. Nem que eu não seja. Ao menos empreendo esforços anti-tirânicos. Um dia eu vou descobrir a razão de não saber encontrar as palavras certas pra te apaziguar daquela pira, amor. Será que é porque nossos dramas divergem muito? Será que me falta dedicação ou repertório? Será que eu nasci mais needy e menos keeper? Isso se aprende se houver prática? Que tal praticar e absorver o meu exemplo de que tudo bem gritar gol na festa lotada? Também o de dar as respostas rápidas quando forem inconvenientes contigo pra não me encher as orelhas com a versão tardia que acaba vindo a galope ou sobre rodas. Liga, liga outra vez esse DragonBall. Repete. Vou decorar a musiquinha de abertura e achar boa. Repito. Acertou em cheio no FireStick sim. Pros canais piratas não vou dar o braço a torcer em voz alta. Em voz alta só te declamo aquele poema de uma golfada só sobre eu querer ter alma de artista, e na verdade ter, e na verdade ter duas, e na verdade ter duas que fazem forças dentro de mim. Por isso às vezes a minha alma trans as bordas. E encho os olhos de lágrimas. E tu concordas que devem ser a TPM e a ressaca juntas mas ainda assim diz que achou legal, ahã, achou sim. Na manhã seguinte, me devolves o amor-idílio que sussurra que tudo está bem quando algo parece não estar. Esse apoio tem a ver com o funcionamento do (nosso) mundo. Ajuda a força da gravidade a às vezes me manter segura, repousada, fixa, calma. Eu preciso de muitas coisas, você nota? Eu abro muitas frentes e abas. Me faz companhia? Assiste deitado na tua rede mental enquanto eu dou voltas muito rápidas atrás do meu próprio rabo só por saber que tem a tua água fresca pra hidratar outro descanso: é um porto, ouvido, quentura, afago delicado. Um misto quente - e bem recheado.

quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Ressentidas

Oh, você se aborreceu?
Imagina eu

Quão asceta
precisei
Ser enquanto você era,
Hedonista,
E firmar meu pulso
enquanto você derretia
Nas faltas,
prantos,
beiços
O corpo mole
A carne flácida das bochechas
E outras encrencas mais

Que direi eu?
Que acumulo, quieta, pilhas de consequências
Do que te devia dizer
Quem não diz
Porque também não tem o corpo firme
Ou ainda me pede roteiro

Oh, de repente me aborreci também!
Estou aborrecida a prestação
Um pouco mais a cada semana
Apagando (com mangueira de jardim
Incêndios que estão para fazer aniversário

Tu não te queimas?
Olha em volta
Tudo pega fogo
- inclusive o teu segundo pé -
e não te queimas?

Te limitas a ter mágoas
E ressenti-las?

Quando é que em dobro
me poderás
dar a experimentar
as novas alegrias?

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Cativo [9]

Toma aqui uma dose desse meu mau humor que vem da contratura muscular que eu confundo com cálculo renal sem aceitar um Dorflex sequer. Na volta eu rego tua plantinha do sucesso me tornando especialista em minibotânica só pra essa semana gastarmos juntos o tempo em atualizações sobre all hands, calls, one to ones e o que mais a cartilha proporcionar mais o vale-alimentação. Estou te ouvindo. Não sei cantar nem uma inteira do Paul, vamos chamar esta de uma heresia de Aquiles, mas eu bato palmas no ritmo, capricho nos uhus de cada deixa e no penteado descolado de improviso, mexo a boca direitinho no verso antes do refrão e me visto de preto pra te acompanhar de novo e pensar em lagartear conforme prometido, My valentine, enquanto eu Let ‘em in na fila do banheiro químico. Pode colecionar estas tuas fichas gastas, eu dirijo na volta. Mas podes decidir mais por conta própria qual a melhor bolsa, que no lugar da pochete servem bem estas duas camisetas belíssimas, falar com 4 policiais ou mais e fazer outro TCC sobre mobilidade urbana na capital, se a gente sentir que precisa? Não, não prometo não ser mais terraplanista das baterias de lítio. Não encosta nesse meu celular carregando. Mas pode escolher almoçar este arroz empaçocado com alga e peixe cru e achar bom, sim. Desde que respire fundo e coma aquela sopa com tripa uma vez por ano. E tire o brinco uma vez por mês. E dance dois em dois comigo na quinta música depois que o salão for aberto. Te aproxima de onde eu venho pra rimar com quem eu fui primeiro que eu faço uau pra um itinerário em círculo enquanto pesco um molhinho e quatro rodelas de salsicha nesse mar de cebola, também. Quem sabe treinando assim eu exercite aquela lealdade de ficar mais quieta. Sem dizer em voz alta que agora temos os amigos que sabem e fingem que não ou não ligam, os que não sabem mas pensam que sabem, e os que não sabem e se soubessem não acreditariam. Eu prefiro os primeiros, mas eu sou suspeita. Agora fica parado. Vou passar de novo a mão nas tuas costas lisas enquanto as pontas das orelhas despontam através do teu cabelo enrolado e crescido. Movo o pé até encaixar no teu, mesmo com essas unhas. Te acho tão bonito olhando daqui que até te peço pra mergulhar de novo só pra registrar cores de corpo-jambo no verde-água embaixo de céu-azul. Respinga em mim, amor. Me refresca de saber que eu posso desejar tudo que eu quiser contigo. Melhor ainda se fizer questão. Depois cerca com flores esse espaço largo que me dás pra que eu seja eu. Sim, podemos mesmo coexistir nestas diferenças que, se parar pra pensar no ângulo certo, nos enriquecem. Nos fazem o que tu chamou anteontem de peculiares e eu achei engraçado mas não ri o quanto devia. Sedimentei tantas fendas e picos para tantas direções e tu chegaste tão imenso de macio, encostando no que é pontiagudo de mim com tanto cuidado. Tentando preencher o resto caudalosamente. Exige mais que eu concordo, eu devo te dar. Quero te dar. Vamos aterrando o fim dessa Arco-Íris que agora vai dar na rodovia pra ela nos trazer mais rápido pra casa. As costas me doem um pouco de ficar na mesma posição, parada. Só que eu ainda prefiro o carro contigo de copiloto, o sofá contigo em suspensão de descrença e essa cama contigo acordado - ou roncando, até chegar amanhã cedo e podermos trabalhar de novo.

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Alcautraz [2]

Bem-vindos a mais um tour pelo Caulabouço da mansão da minha caubeça. Outra imperdível oportunidade de acompanhar os trabalhos iniciais da gerência na elaboração de uma espécie de inventário dos prisioneiros - o que, com sorte, futuramente possibilitará categorizar e apinhar em apenas quatro grandes celas os Traumas junto com os Traumas, Ojerizas com Ojerizas, Paranoias com Paranoias, Medos com Medos. Para quem sabe então estabelecer a contento o grau de suas periculosidades individuais, para quem sabe então ressocializá-los com maior frequência e efetividade ao invés de simplesmente trancafiá-los aqui por anos para ir administrando com terapia um por um, quadrilha por quadrilha.
O desafio é saber como isso será, ao final, possível. Os esforços, porém, são intensos. A começar porque há nesta instituição penitenciária um rígido e curioso método na recepção dos caulouros. Porque não se pode revistá-los por muito tempo no momento da caustódia, sob pena de que algum deles tenha o poder sobrenatural de contaminar tudo ao seu redor (e além disso teme-se que sejam os novatos capazes de incitar a fúria dos mais antigos), os que chegaram por último sempre ocupam as primeiras celas, mais pra frente de quem entra. De modo que são alimentados com comida mais fresca. Este esforço em série de realocação para as celas seguintes, necessário de tempos em tempos, faz com que os mais antigos acabem se tornando também os mais pros-fundos.
Pode até não parecer às vezes, mas a rotina diária entre todos eles é até que harmoniosa, embora burocrática, e acredita-se que quando finalmente for possível entender a que classe cada qual dos presos pertence, e estiverem todos acomodados com seus pares, será possível criar pequenas comunidades autogeridas e sustentáveis. Possivelmente os momentos de recreação também se tornem mais fáceis, pois se saberá qual sentinela por em guarda para que não escapem todos juntos nem ateiem fogo no Caustelo inteiro, fazendo dele O Caustelo de Traumas, ou O Caustelo de Ojerizas, ou etc. É pela escrita que eles se banham no sol. Vamos andando, por favor.
Aqui à direita, ainda mais pro começo do corredor, logo após o Classe Média Típico e a Dúvida de Ser ou Não Ser Mãe, há duas celas gêmeas nas quais estão acomodadas as Filípicas. As Filípicas são duas lobismulheres de garras afiadas sempre cuidadosamente pintadas de renda ou, no máximo, uma francesinha. É comum vê-las lendo e comentando com fervor um livro de aventuras sangrentas que sempre carregam debaixo dos braços. Quem as vê de dia imagina que sejam exatamente iguais às mulheres ditas comuns: têm TPM, ambição, vaidades, defeitos, desejos lascivos, invejas grandes e pequenas. Mas elas supõem que são diferenciadas, praticamente uma casta à parte. E em toda lua cheia, e às vezes nem precisa ser lua nem cheia, mudam de forma para a Tá-Amarrado version, quando começa a lhes escorrer uma baba do canto da boca enquanto vociferam sobre o que lhes desagrada e uivam juízos de valor sobre como os outros presos (e principalmente as outras presas), justamente porque não leem o livro de aventuras comum às duas, comportam-se muito mal e elas bem. As Filípicas são arquirrivais das Fadas Ceticínicas - mas isso é outra história.
À esquerda, em uma cela ampla e bem iluminada, acomoda-se o Preferidor de Pets. Embora nitidamente bípede, teima em tentar andar com o apoio também das mãos, para simular um trote em quatro patas. Pouco se sabe sobre ele até o momento, além de que é muito verde e nunca teve filhos. Filhote de Figueiredo, ele repete em público que os hábitos, o afeto e até o cheiro de qualquer bicho é melhor do que o dos seres humanos. Em desastres naturais, quaisquer causas de caridade e até para justificar a própria ausência nas atividades comuns, o Preferidor de Pets está sempre pensando primeiro nos animais que estão lá fora, ó, pobres coitados, verbalizando de vez em quando estar incomodado que o Caulabouço não esteja adaptado e equipado para eles.
Na cela seguinte, o Aproveitador. Uma criatura em formato da cara do cara e coroa, inclusos os louros presos aos cabelos, só que inteiro feito de madeira e com marcas de esganação na altura do pescoço, o que faz com que alguns o chamem pelas costas também de Esganado. Talvez o que de mais característico se possa dizer acerca do Aproveitador é que ele não deixa nenhuma oportunidade passar. Se deixar, ele se aproveita - inclusive das coroas. O Aproveitador foi preso aqui porque ele não perdoa um real, mas também não devolve o troco a maior. Em relação a ele não se deve contar com bom senso nem espírito de comunidade. Não reparte nem os cabelos. Sempre que pode, ele aproveita para cobrar de maneira vexatória os seus devedores, exigindo-lhes juros altos e a desgraça pública. Reclama sempre do que lhe dão a menos: pode ser um centavo, uma atenção ou uma ervilha.
Toca a sirene. Fim do passeio. Circulando, deu por hoje.

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Alcautraz

Bem-vindos a um tour pelo Caulabouço da mansão da minha caubeça. Uma vez ao mês ou mais, abrimos visitas guiadas até este subterrâneo sujo e escuro onde se ocultam Traumas-Ojerizas-Paranoias-e-Medos da pior espécie
para espiar como se comportam,
expiar os que se comportam e
alimentar com mão amiga todos os outros pelas frestas estreitas que se abrem horizontais até detrás das portas de ferro cerradas deste corredor extenso, enegrecido por paredes de pedra e limo.
Atrás destas grades estão personagens quase mitológicos, cujas estórias excêntricas de seus nascimentos são repetidas à exaustão, quase sempre por meio de anedotas, nos encontros festivos e outros nem tanto promovidos nos salões iluminados da superfície do Caustelo - tanto, até ganharem contornos muito duros, adicionando-lhes supostos poderes mágicos, sobrenaturais, tirânicos, por vezes muito diferentes do que possam ter sido em sua forma original.
Daí a importância das visitas periódicas: para enxergá-los de novo olhos nos olhos, frente a frente, no que tiverem de real. Encontrá-los in persona tira da narrativa o poder de incitar o ódio ou o escárnio pelo que nem são, pelo que nem foram, ou por aquilo que somente se tornaram por terem sido trancados neste porão. Mas descer as escaudas e permitir visitação de tempos em tempos também pode fomentar um abolicionismo penal às avessas. Às vezes vê-los tão de perto acaba fazendo concordar mais com a medida drástica de aprisioná-los para que não circulem livremente à luz do dia.
Certamente a mais emblemática entre eles é a Fantasma da Franja Curta, também chamada simplesmente de A Moderna. Pode ser vista a qualquer hora do dia ou da noite, sempre causando uma espécie de assombro. Foi uma das que chegou por último. É a única que não tem endereço definido entre as celas - porque vaga diáfana, etérea, capaz de atravessar todo o cáurcere incitando rebeldias variadas dos outros detentos, lembrando-lhes que têm fome, por exemplo. Usa coturnos ou tênis pretos nos pés, embora nunca toque o chão com eles. Muda de forma conforme lhe convém, mas na maior parte do tempo tem cabelos de um ruivo pálido, a pele clara, tatuagens grossas de beleza e cadeia, entende de rock oitentista e nunca se importou com o que pensariam do que estivesse vestindo, postando ou em quem estivesse votando. Foi ela a idealizadora e coordenadora do Grande Motim de 2018, no qual todos os presos saíram para uma animada e afrontosa dança das cadeiras e, depois, acomodaram-se em outras posições que não as de costume.
A Fantasma da Franja Curta passa sempre mostrando a língua para provocar outro perigoso morador do Caulabouço: o Classe Média Típico, trancado aqui pelo simples fato de viver, ambicionar e verbalizar tudo conforme um estilo de vida batizado com nome de cidade. Sim, ela mesma. Balneário Camboriú. O Classe Média Típico assume forma humanóide, embora certamente não seja um humano completo. Adora churras, odeia corrupção, inveja e falsidade, seu partido é o Brasil, sua mulher era bem loura mas o abandonou quando eu o aprisionei para logo se casar com outro figurão. Ressente-se porque precisa dividir a cela pequena com seu carro importado, que ele lustra todos os dias enquanto reclama de não poder mais fazer rachas pelos corredores, parte do caustigo que lhe condena a refletir sobre suas prioridades. Na última visita foi necessário revestir as paredes ao redor de sua porta com avisos ultraespecíficos para que as visitas não o alimentassem com pomadas ou secadores de cabelo que lhe deixavam igual ao Johnny Bravo. E nem com jacarezinhos da Lacoste, que ele também aprecia muito.
Na segunda cela do corredor à direita descansa impávida a Dúvida de Ser ou Não Ser Mãe, uma criatura diminuta e adiadora por excelência que, pelo que conta a lenda, vai viver 100 anos, mas também pode sumir inadvertidamente. Sua história fica pra outro dia.
É hora de caudear os portões de Alcautraz: uma Azkauban toda minha, feita de loucos sussurros e uivos, nojos, perigos e repressões. Frio. Tédio. Amargura. Insistência. Repulsa. E força bruta.

sexta-feira, 4 de outubro de 2024

Tome notas

Solecismos

Cresci um pouco acanhada de dizer
Coisas potencialmente mal interpretadas
Fingia que entendia tudo
E levei uma faculdade para aprender
Que empleitada se escreve empreitada

***

Não tenho mais todo o tempo do mundo
E isso me deprime um pouco
O todo me deixa ansiosa
Para cumprir a parte

***

Academia

Acreditar no conceito
De prodigiosidade 
Me fez não entender bem o valor
Da repetição
Da constância
E do esforço

***

Maquiagem
Em cima de pele estragada
Não cai bem
Assim como os cirurgiões
proíbem os esmaltes
Para monitorar oxigenação
No dia a dia eu quase não camuflo
O que meu órgão de contato 
- justo o maior de todos -
tem pra dizer ao mundo
sobre má alimentação,
a pia pequena lá de casa
e o hábito de dormir de maquiagem
Minha preguiça de ser clean girl, afinal.

***

Só existe lugar
para a descoberta
e para a redescoberta
Quando nada é pressuposto

***

Aprender com a observação do que acontece
Aos outros

***

Um cigarro preso sem mãos entre os lábios
Enquanto tateia o celular
(seria a nova máquina de escrever?

A criatividade como um fim em si mesma
Como um exercício
Domesticado
A criatividade como um bobo da corte
Pelo prazer de fazer rir
Ou fotografar

***

Caminhos que não se bifurcam
(qual é o oposto de bifurcam? não quero dizer convergem

***

“A gente incha, né?”
Não sei se me surpreendi mais com a solidariedade viçosa da costureira ou com o fato de ter entendido que eu disse aquilo em voz alta

***

Por que aquela velha culpada não parou para ouvir nossa conversa depois que eu não atropelei aquele motociclista? Eu hein.

***

Meus anjos da guarda não aguentam mais, Colin Robinson. 

***

Desinvestir.

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Pior herança

Cogitar nunca mais ver a cor do C de ouro que o vô Nelson me deu na crisma porque um belo dia da semana passada eu resolvi tirar ele do lugar de onde ele nunca tinha saído para reaproveitar a corrente com outro pingente já que outras três douradas que eu tinha simplesmente estouraram do meu pescoço consecutivamente no último mês me adoece. Me adoece. Profundamente. Eu queria estar brincando ao dizer isso. Eu queria entender um pouco mais de desapego com coisas tão específicas. Eu queria ter aprendido a rezar o responso. Eu queria ter fé para dar 3 pulos a São Longuinho ou para prometer a Santo Antônio, junto da minha súplica, o que mais sua reza exigisse. Eu queria não ter revirado todas as bolsas todas as gavetas todas as capas de óculos todos os zíperes todos os papéis de Trident amassados dentro de todos os outros compartimentos aqui dentro de casa. Eu queria conseguir não ter ficado obcecada por esta busca como eu ainda estou. Eu queria que ser generosa me protegesse dessa avareza de odiar não saber onde coloquei. Eu queria não estar com tanto medo porque talvez o tenha jogado fora embrulhado e amassado confundindo com ele um algodão, um cotonete ou um chumaço de cabelo, se é que eu fiz isso. Eu queria não ter decidido no último minuto antes de sair de casa ser tão, mas tão agradável com a anfitriã da minha visita de quinta a ponto de usar o C que ela me deu. Eu queria não ter pensado que aqui eu nunca ia perdê-lo já que agora aqui é lugar nenhum, o último lugar da face da terra, um bueiro para Nárnia, o estômago de um rinoceronte dentuço que é cheio de suco gástrico e derrete o que aparecer imediatamente, a terra querida dos gnomos fugitivos com pingentes à tiracolo. Eu queria não me perguntar se eu fosse um C onde eu estaria por tantas vezes consecutivas até não encontrar o sono e levantar da cama para procurar outra vez na mesma gaveta em que ele não estava quatro minutos atrás, quando o procurei pela milésima. Eu queria deixar ele no primeiro lugar que me ocorreu deixá-lo quando o tirei do cordão e não no segundo, inencontrável, no qual eu tanto não o perderia de jeito nenhum que o perdi para sempre. Eu queria não imaginar esse plano mirabolante em que um ladrão ou uma ladra entra na minha casa às 4h de qualquer madrugada, não faz barulho nenhum, encontra (só por essa parte já nasceu perdoado) e me rouba uma única coisa: justo um tantinho de ouro em formato de sorriso que deve valer um total de uns cinquenta reais ou menos. Pra quem não ganhou ele na crisma, é claro. Eu queria não estar amaldiçoando a freira do colégio de freiras frequentado pela minha avó 70 anos atrás que deve ter rogado uma praga atravessadora de gerações a todas as primogênitas da nossa família para que se culpem - bem no oco - quando podem eventualmente não ter cuidado bem das próprias coisas e para que sejamos todas incapazes in-ca-pa-zes de perder o que quer que seja e ficarmos bem com isso ou quem sabe consigamos simplesmente deixar para lá. Essa pior herança (a que eu queria perder), segue bem aqui rente ao osso do peito.

segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Eco [31]

Visto um chapéu de safári verde-oliva sempre que preciso fazer uma expedição aos arquivos antigos em busca de mais espaço. É porque é muito selvagem visitar a minha história contada - e repetida - por todas aquelas figuras ou missivas e doçuras-amarguras que agora parecem tão antigas. Experimento quase forçado esta onisciência zenital, vendo de cima e de depois deste monte onde se amontoaram todas as minhas ingenuidades e buscas por reciprocidade, todos os meus dramas e certezas, no qual por cima se esfarelam fininhos e infiltrados os ciúmes e traumas, as dedicações ou demoras, os egos e carências. Nunca mais serei ocioso a ponto de me fotografar letra por letra. Há nisso algum saudosismo, mas mais uma espécie de alívio. Revisitar estes arquivos é me perguntar se vivem, do que não se alimentaram e como repousam no fundo da minha memória os eus passados. São coordenadas para voltar a mim ou muletas atrás das quais me escondo, como uma vez me insinuou a Laura? Estes registros são, agora, como ipês amarelos que contêm a primavera inteira - que florescem e depois minguam, que espatifam, que mofam, que secam, que decompõem em adubo urbano os asfaltos, sujando o caminho. Mas são tão bonitos.

segunda-feira, 23 de setembro de 2024

Vestida para matar

- Ihhh, lá vêm as meias finas pretas
- O que será que vai ser hoje, meu parceiro?
- O scarpin preto ou a bota de bico fino, aposto
- Tomara que seja a bota, o scarpin me mói o calcanhar
- O meu também. Mas ela ganhou um novo, lembra? Talvez sirva melhor
- Eles sempre moem. Se tem uma coisa que eu aprendi nesses anos de estrada, é isso. Scarpins sempre moem, quanto mais novos pior, não importa o tamanho. Já devias saber.
- É vero. Ela também não aprende nunca a comprar um tamanho maior ou devolver pra loja, né, é incrível. 
- A real é que eu acho que não tem tamanho certo. Eles são feitos no formato de machucar.
- Tens razão. Talvez ponha ao menos um band-aid?
- Não. Vai ter preguiça de tirar a meia agora e não vai ser brega a ponto de usar por cima
- Então tomara que seja a bota!
- Acho que tá calor demais pra bota, nós vamos suar se esquentar até o almoço
- Se esquentar nós vamos suar de qualquer jeito, com essas meias...

- Ih, não olha agora, lá vem o scarpin novo.
- Olha, eu vou reclamar já, que é pra se tocar de nem inventar de passar o dia com isso
- Vamos juntos no três. Um dois e
- AAAAI. Essa merda doeu, hein? Precisei nem fingir
- Aaai, ai, eu sou um pouco menor e já fui obrigado a reclamar também
- Ai. Vai tirar, vai tirar. Ai. Tenho fé.

- Ufa. O que será que vem em substituição?
- A bota?
- Pode ser, mas vai suar..
- Ela meio que não liga.
- Esse scarpin novo aí vai dar igual os óculos: comprou outro e ainda tá usando o velho
- hahahaha Aquela carniça.
- Ri não, hein. Às vezes mais vale valorizar o conforto do que a beleza
- Beleza? É, não vou me meter, que isso não é meu departamento.
- Até parece que não sabe que metade do que a gente passa é em nome da beleza...
- Às vezes eu tenho a impressão de que ela faz isso com a gente só pra melhorar a postura da coluna enquanto anda
- Não adianta nada, os ombros continuam caídos e ela é corcunda de qualquer jeito
- Mas a lombar melhora, vai...
- É... Ou tem a ver com aquele papo de vencer a primeira batalha do dia, né? Viu que ela começou a arrumar a cama?
- Pelo menos isso faz ainda descalça
- hahahah Pelo menos. Se não seria uma batalha em cima de outras batalhas.

- Brother, eu acho que tá vindo aí aquela sapatilha sem salto.
- Não creiooooo. A confortável? Mas como assim? Ontem e anteontem ela já usou tênis, hoje não é segunda-feira?
- Parece mentira!
- Parece mentira é quando eu imagino que ela podia ter escolhido fazer Educação Física
- Aí sonhou alto, hein? Metade da vida dela te apertando na ponta, mil calos e bolhas acumulados e tu ainda não aprendeu o jeitão que ela gosta de nos tratar
- Com a minha sorte, ia é virar jogadora de futebol
- Ou dançarina de balé
- hahahahahah, pode crer.

- Papo reto agora. A gente meio que deformou pra caber na vida dela, né?
- Bastante. Esse calo duro do meu menor não vai curar é nunca.
- Desse eu tenho, também.
- Que bom, porque ultimamente ela ainda começou a nos comparar
- Quê!?
- É, começou a nos comparar.
- Dessa eu não tava sabendo
- Eu não gosto de fofoca, mas desde que cortou a do teu maior assim diagonal, ela anda te olhando torto e te achando mais feio que eu.
- É muita coragem! Sinceramente! Eu não peguei fungo nenhum, quem pegou foi ela, e sabe-se lá como, deve ter sido na pedicure. E quem achou esse jeito escroto de tentar resolver foi ela, também.
- Fala sério, eu sou mais bonito mesmo.
- Metido.
- E eu tenho tudo o que ela gosta: as unhas inteirinhas.
- Cretino. Te cuida não que eu tropeço em ti, hein.
- Relaaaxa. Tô brincando contigo, mano. Logo vem o verão e a gente respira melhor.
- Se eu bem conheço, vai ser esmalte semana sim, semana não.
- Mas aí ela não vai mais nem ver essa nossa diferença
- A semana mal começou e essa conversa me deixou exausto. Queria tanto ser bem tratado, massageado, escaldado com ervas
- Por ela? Vai sonhando
- Agora que ganhamos esse conforto por mais um dia, deixa ao menos eu imaginar um futuro melhor?
- Deixo. Mas não vai me surpreender se amanhã ela já escolher de novo ir vestida para matar
- Matar nós dois, só se for
- Nós dois e essa vontade estranha de se sentir adequada

terça-feira, 17 de setembro de 2024

La plata

O peso da porta do quarto onde eu durmo é um cofrinho de brinquedo que imita um cofre de verdade e que abre se o fecho é virado para o 70. É um dos poucos bens materiais que eu guardei da minha infância. Cabia um cadeado, mas nunca pus. Eu nunca tive muito apego às coisas, embora deteste não saber onde estão ou notar que sumiram, e me desfiz sem muita cerimônia de vários cadernos, diários, daquele taco de bets com meu nome pirografado na fonte da Coca-Cola com o adesivo das Meninas Super-Poderosas colado e de tudo o mais, o que deixa ainda mais simbólico e engraçado eu ter guardado não uma boneca (a única Barbie da vida), nem um utilitário gibi, mas justo um cofre. Um cofrinho. Tem em cima dele uma marca áspera na tinta lisa que eu guardo como um segredo. É a forma de um dedo sujo de brigadeiro, que encostei enquanto enrolava vários em algum aniversário quando ainda era criança, talvez até no dia em que ganhei de presente, mas não me lembro direito da circustância. Só lembro de ter pensado, dias depois de muito esfregar, ao ver que a marca não ia sair ou uniformizar de novo no verde do revestimento, que deve haver muita química nos corantes daquela época, imagina o que faz no estômago. E que talvez mais valesse ter continuado com o cofrinho prata amassado da Minnie - que já estava meio enferrujado nos cantos mas era o meu de estimação e as moedas não trancavam nas extremidades porque era cilíndrico e eu já tinha aberto dezenas de vezes em cima da cama para separar tudo por valor, e depois contado com meu pai enquanto ele me ensinava a contar e a por tudo em sacolas de plástico bem amarradinhas para facilitar a troca. Talvez tenha sido ali que aprendi a guardar e dar valor ao dinheiro - eu não tenho certeza, nunca entendi de onde veio essa minha rebeldia. Também nunca entendi se lemos minei o nome da Minnie só pra rimar com Mickey ou se existe um justo motivo na língua inglesa, mas essa é outra história. Sou boa de decorar. O jeito certo de escrever as coisas, mesmo que elas não façam tanto sentido assim pra mim. Os nomes completos. E os movimentos automáticos do dia a dia. Para fechar a porta do quarto onde eu durmo, nas raras vezes em que é preciso - geralmente só para acessar as roupas do cabideiro fixo atrás - há dois anos e quase meio arrasto com o pé direito o metal meio empoeirado contra o piso na direção da porta do banheiro. Minhas economias poucas fazem sempre o mesmo barulho. As moedas tilintam apertadas umas contra as outras. Outro dia troquei um pouco no Café, porque começaram a pesar demais para arrastar. Elas parecem cada vez mais escassas no mercado. Precisa-se de moedas, lê-se também nos caixas de padaria. Ainda lido com muitas moedas, apesar de tudo. Coisinhas físicas que valem o quanto houver escrito nelas. Cujos lados opostos se grudam entre si por uma camada fina de metal benzida pelo Banco Central.
Diz-se que para decidir qualquer coisa basta jogar uma moeda para cima e, naquele milésimo de segundo em que está no ar ou se esconde entre o dorso da mão e a palma da outra, saberemos o que escolher, porque saberemos pelo que torcemos. Meu ponteiro não marca mais 70 há muito tempo. Essas moedas são do valor que eu escolhi perder e do preço que me obriguei a pagar quando as quis jogar pra cima.
Hoje saem, mais uma vez, voando pesadas rumo a um céu pela janela de não saber pra onde.

quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Triperalismo

Se guardarán tus tristezas
En un gran libro de sal
Se guardarán como agua
En la niebla del canal
Hasta que llegues a verme
Y ahí entre soles y estrellas
A tu bondad que es enorme
Y a tus internas bellezas
(Gustavo Pena)

Que palavra usar agora que a palavra vale pouco? Preciso inventar novas.
Sou a expoente primeira do Triperalismo. É dali, das tripas, que me saem as vontades, as lágrimas, os textos e a sensibilidade. Mas também é ali que se situa a filial de mim que tem nome fantasia: Melancolia. Onde se apuram e contabilizam num escritório de paredes apertadas, escuro e úmido, a portas fechadas, os preços pagos para manter o funcionamento da matriz: Alegria. As fendas ficam abertas - para que tudo entre, para que tudo possa sair. Pelo pátio da matriz zanza um cachorro sem raça que corre e corre e ladra e busca e se diverte mas sempre volta muito dolorido com os espinhos de um porco todos cravados no focinho - sem entender como foi capaz de (se) machucar tanto. Na filial, se alimenta de realismo mágico um elefante-baleia imaginário que cresce, cresce e, dobrado, não passa por baixo do vão dessa porta de ir embora quando deve. E pesa. Ainda outro dia, antes de dormir, me ocorreu a imagem de uma mãe sentada num banco de parque, displicente, sem reparar na criança aprendendo a brincar sozinha na gangorra. Queria os altos, mas não sabia administrar os baixos. Até entender que, para aquela brincadeira, precisava dois extremos: um de subir e outro de descer. Atrever-se a flutuar, só jogando pra cima o fardo que afunda. E então aproveitar os microssegundos até que caia de novo. Primaverar o blue e o gris em cores vivas, quentes, solares. Até lá, chorar na mesa de qualquer restaurante. Não se constranger de sentir, se é de sentir. Deixar as lágrimas se anunciarem como febre - para regular a temperatura dos sentidos, cozinhando em água quente e salmourada um caldo fino de temperar as bochechas com líquido
que verte
entre as durezas e belezas.

terça-feira, 10 de setembro de 2024

Bélica

Sem hora
das minhas guerras
Internas
Da batalha do meio para a frente
Ignorada.

Sou na fagulha
Toda explosão
de culpas mais defesas
Em câmera
rápida.

Solto a cavalaria
Na bandeira hasteada:
O dedo aponta
em gatilho
Um ricochete.

Só o tambor conta seis demoras
na boiada
dada
Pra não sair (mais
Como culpada
E até quando menos
- deveria?
Estou sempre armada

segunda-feira, 26 de agosto de 2024

Firewalking

Na noite fria, aquecimento. Minha barriga é ensinada a procurar as tuas costas para conciliar que os órgãos não sofram da perda de temperatura ao serem virados para a janela que certamente por detrás desta cortina está suada do inverno que fez de novo lá fora. Vou aninhando a cabeça no vão entre o meu e o teu travesseiro. Não sei exatamente o que fazer com o braço de baixo nesta posição de bruços improvisada - mas sei que continuar amando é sobre querer encaixar ou ignorar o que precisa ser feito a dois com as faltas e com as sobras. O meu ombro sente. O corpo inteiro, também. Tenho muito sono. As minhas forças se exaurem na energia requerida por buscar, puxar com as duas mãos e domar estes nossos alinhamentos de agora.
Mais cedo cozinhamos de novo cada dúvida - temperada com sal a (teu) gosto. Monitorei cuidadosa as panelas. Eu sei que o mesmo forno que assa bem pode torrar esse porquinho - resisto a dizer: porquito - marinado, que finalizamos com o barbecue buscado na corrida contra o tempo do caixa para satisfazer o tamanho do meu desejo. Depois elogiamos as batatas - pegaram bastante o gosto do limão - e fizemos um comentário espirituoso ou dois sobre o volume que o arroz, esta comida universal, faz em todo estômago. São referências do que realmente sustenta.
Sorrio bebendo a cerveja morna contra esta tarde de sol como se ainda ontem não tivéssemos tido madrugada. Distraída, não vi converterem o pênalti. Nos derradeiros me aproximei do alambrado, para garantir que não perderia mais nada. Perdemos. Mais tarde exigirás de novo sejam medidos (com termômetro ou placar?) os teus prejuízos. Não posso devo nem quero reclamar dos meus. Como, porém, eu vou te abrandar, indenizar, amornar, compensar a contento, na medida exata, sem te consumir ou me apagar? Água e fogo, tu dizias por escrito. Água e fogo - e os seus ajustes.
Acordei hoje e meus pés estão cheios de bolhas de apreender o calor deste caminho de volta, todo pavimentado de brasas. Quanto tempo levaremos para ajustar de novo a condução e a retenção que exigem esta caminhada em dupla? Se quando é extremo, queima. Se quando é lento, queima. Se quando estendemos o braço nos demoramos, fingimos que não, e estamos de pé, de mãos dadas, um à frente do outro, já nos queimando de novo. A pele fina das solas me arde, lancinando pior do que cacos de vidro. Sentes, em igual proporção, outra categoria desta mesma dor de queimadura. Eu peço que me mostre. Te assopro. Falta um pouco de fôlego. É o tempo destes calos que vai recompor a pele nova.

sexta-feira, 23 de agosto de 2024

Cativo [8]

A kalanchoe que refloriu
sem rega
Me soprou ontem um segredo
sobre dar valor
a qualquer coisa que se mantenha
                           (viva ma-
dura e certa)
entre a pouca terra seca
E um punhado de negligência

Trouxe à mesa
para colorir
Simbólica
alumiada por velinhas
Cintiladas
por tecnologia USB
El día del reset
- nossa nova
Saona
Sabor de
ricota, linguiça e espinafre
Frisada no doce alcoólico da
Sobremesa

Estou disposta, amor
Estou disposta
A ti, às mãos e massagens
- no ego e no corpo -
que demandem a energia
que transfunda
as mágoas
e os gozos
para fora
e para dentro

Essa flor que flore
Colore de vermelho
a maturidade de ser de novo
Adulta
tradicionalmente
Inteira
(re)Integrada a ti
Com cola nova e
Redecorada

Repito de novo
o quê; quando; e como
essa massa ao pomodoro
quantas vezes mais
quiseres em
quanto agradeço
Limpando os beiços
Teres me acordado 
                (e buscado)
de volta,
ainda que pelos cabelos, para
amanhecer outra vez
amassada, ao teu lado.

quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Talabarte

O peso que sustenta o teu corpo é o mesmo da força que subjuga e faz tensão entre as classes. Cordas te amarram cautelosamente a este cinto-parafernalha inventado de ancorar. Enquanto eu só reclamo de mais um prazo ou telefonema ou atendimento sem marcar tu cantarolas faceiro It’s my life em coro com eles, pela quinta vez só o refrão, em alguma língua entre o grego e fonemas em mastigação. Tua alegria não se ensina em curso de idiomas. Esta simplicidade se perde ambiciosa na primeira casa de dezena de milhar. Teus cotovelos estão suspensos fazendo subir, descer, desempenar os barulhos raspados ritmados contra o concreto. Os meus fincados nessa mesa comprida de empilhar pastas, canetas, atestados, anos e anos e cálculos e toda sorte de documentos. Não desvio da rota. Caminho equilibrando entre as pedras. Tu tens os pés arrasados no chão ou voando soltos no ar. Eu te dirijo o bom dia toda manhã dessa obra interminável, então ao despedir tu me dizes: tchau, bom descanso. É o que também te desejo. Quero encurtar a distância, desde que sem margem para má interpretação. Mas temo que tenha pouco apelo te explicar que a casa da minha infância também não tinha TV a cabo. Que eu conheci a valsa que dançam as parcelas e os agiotas. Que eu também tenho roído as unhas. Que eu também sou versada em todos os sertanejos antigos com ênfase em Decida, do Milionário e José Rico. Que eu também tatuei o rosto esta manhã - à noite, porém, eu tiro com algodão. Que eu também já dividi apartamento com uma amiga para com isso dividir os custos e a companhia. Mas não estou dependurada agora - e esta anti-gravidade econômica se impõe silenciosa entre nós. Se careces de outros luxos, recorda ao menos: o sol vai embora, tu vais. Eu sempre fico. Tu precisas de luz natural para obrar. A mim uma fluorescente basta. Tu no talabarte do lado de fora. Eu tão dentro. Estamos movendo o mundo a construir - prédios e futuros.

segunda-feira, 19 de agosto de 2024

Feijão com arroz

Encho a boca
como quem diz sim
Não sei mais nem um não
Enquanto encaixo essa colher
Na minha mão.

Me satisfaz o dobro
Cada grão.
A comida caseira
é temperada de fome de chance
De que, de todas as fomes,
Justo esta
mais primitiva
decida (por nós)
por saciar-se no estômago
de sabor já conhecido
E preferido.

Os pretos e brancos
Deitam servidos
contrastando de saber
De escuros e claros 
- que se mesclam e confundem -
Com as luzes e as sombras
De dentro
Das substâncias
destas panelas transparentes
que transportamos para o quarto

Acesos
Preparados
em fogo vivo
E postos à mesa
Dentro de onde estão estampados
corações

Feijão com arroz
que sustenta
Essa vontade de ficar 
- e de pedir para ficar -
dentro
Inteiros
Criando energia
Com e para o que, de fato,
enche barriga.

sábado, 17 de agosto de 2024

Oitava maior

5a.

Meu peito está descascando. Cada farelo desaba um hábito diário perdido. Ontem saíram as rosquinhas do trato com a diarista e a casa toda escura da noite na minha chegada. Hoje a pele que me sai é a do placar do jogo de mais cedo. Repito: gostaria de meditar a saída. Uma ideia providencial que recompusesse essa partezinha fina da derme que torrou muito e sem proteção, avermelhou e ardeu no sol dessa dúvida. Seria o caso de hidratar um silêncio nesse peito para ver se a cútis regenera e me ensina qualquer coisa que eu possa aprender? Ainda ocupo o mesmo lado da cama. Se quero abrir, tenho que abrir. Se quero apagar, tenho que apagar. Buscar a água. As coisas de ontem à noite ficaram onde eu as deixei. Essa casa é só metade e, mesmo eu tendo provocado essa circunstância, a falta esbarra no mofinho do teto de todos os cômodos que hoje não foram abertos.

***


O primeiro minuto da manhã acordada é um dos piores. Meu despertador não dá conta da minha vontade de voltar a dormir - de preferência o dia todo, porque em sonho nada mudou e não preciso pensar, remoer, martirizar, decidir. A impressão de que vou perder a hora de levantar porque só os meus alarmes estão ativos e agora sou a única pessoa que amanhece zelando por mim amedronta. A ideia de que não dividiremos mais a preguiça de virar para lá e para cá muitas vezes com os corpos em parêntese aberto aberto ou fechado fechado, também. Essa mesma rotina que esmagou muitas doçuras precisaria, de qualquer modo, de uma reinvenção. Qual sou capaz e quero fazer? Preciso ser franca comigo. Agora não tem ninguém para eu educar a começar as atividades do dia com o exemplo e eu não levanto mais “primeiro” - eu levanto “ou não”. Ontem cheguei cedo e tinha uma ponta de paz a ser puxada no silêncio absoluto. Mas logo foram ditas coisas duras - entre as quais, a de que eu sou dura. Logo eu, que me sinto decompondo. Essa espiral de medo, amor, pavor e indignação me arrasta muito rápido para uma culpa circular sem fim, centrípeta, que me cega acordada. Seria melhor lidar com os sentimentos em doses: primeiro um, de uma cor, limpo, num frasco. O outro ao lado, isolado, em outro frasco. O outro etiquetado em recipiente bem vedado, nele escrito Remorso, cuidado para não extravasar. Todos paralelos. No fim um gráfico - que possibilitasse medir o saldo e chegar ao resultado dessa equação de quinta. Mas meu amor e minhas amarguras estão todos muito unidos, como quando as crianças juntam todas as massinhas de modelar e fazem uma grande bola. Que acordou grudada como durepox na boca do meu estômago. E cuja densidade não cabe na exatidão da matemática.

***


Cuidar de mim como se só eu pudesse. Organizar de fora para dentro. Fazer de novo a cama, criando um ritual. Guardar dobrado o pijama. Conferir se as toalhas finalmente secaram e dar a isso um grau de importância. Recolher as últimas roupas de verão do varal nesse inverno com sol. Varrer ou aspirar a sacada. Costurar paciente a alça do vestido de bolinhas com linha preta, como quem é capaz de costurar o coração que rompeu e desistiu de funcionar. Finalmente tirar o esmalte desbotado amarelado descascado das unhas roídas da mão e usar um alicate para aparar todos os cantos arrepiados que não suporto mais puxar com os dentes e deixar em carne viva. Não desistir de curar e não prezar por doer. Encarar o fundo dos poros dos cravos espremidos do rosto inflamando sem ter mais muito o que fazer com as marcas. Lamentar que a estratégia de cortar na carne para eliminar o fungo do dedão do pé aparentemente não tenha funcionado. Providência: cortar ainda mais na carne e acreditar que agora sim. Lavar as mãos para que a água sagrada da pia assepsie a possibilidade de outro dia um pouco mais limpo de autodepreciação ou autocomiseração. Reciclar os pãezinhos endurecidos na sanduicheira com manteiga como quem firma o compromisso de não desistir de se manter alimentada e viva. Comer tomando chá. Lembrar da calma doce de um stroopwafel. Exaurir o sono da acordada durante a noite em bocejos. Reinventar um calendário solar no qual os dias passem iluminados e nas noites haja menos vontade de sumir. Encarar no espelho a palavra escolha ouvida em repetição e tatuada na testa do imaginário. Respeitar o tempo

 que tudo leva. Torcer por ser prática cruel viva alegre só não refém da vida - esta coisinha inteiramente suscetível às bençãos e maldições da chance e possibilidade de mudar de ideia de uma hora para outra. Ter que lidar com isso.

***


Nas encruzilhadas, não são vistos os dois caminhos. Deve-se procurar com o faro. Antes de atravessar a bifurcação não se vê quase nada. Depois, tudo eram sinais. Como o corpo sangrando escuro pelo menos dez dias antes do tempo. Não, antes: a pergunta certeira que não possibilitou negativa, mas cuja resposta também não era a raiz de toda a verdade. O questionamento remoído cuidadoso, sem margem para fugir, que amaldiçoarei por ter me desvelado e do qual me lembrarei por toda a minha vida, especialmente pelo tempo que tardei. Não, antes: o pacote de dados do voo de volta. Não, antes: trocar de bolsa de praia e esquecer de por nela o cartão-chave do quarto. Ali já devia saber, mas não fui capaz. Não, antes: inventei de tirar o dia para ler. Coisa perigosa de se fazer, eu devia imaginar, mas não fui capaz. Ler pode dar uma epifania ou duas - levar às lágrimas ou às gargalhadas. No meu caso, às duas coisas. E à escuta atenta de uma comunicação do que gritava o peito. Não, antes: sonhar que se conheciam e acordar perturbada, sedenta pelo Elogio da Loucura do Rotterdam até amanhecer. Se Murphy tinha algo a me ensinar, convinha que não o fizesse tudo num dia só e numa ilha cuja pedra azul clara convoca a uma obrigação quase coercitiva de só amar, ser feliz e solar. E me constranjo ainda mais de, num mar lindo de coisas tão certas, quem sabe ter me detido nas erradas para decidir. Não, antes: adiar a transferência pelo alto valor dos encargos e com ele tentar resgatar as paixões - muito antes de assegurar o patrimônio - porque era destas, e só destas, que esta casa deveria ser feita. Mas o amor não assina a carteira. Não faz fundo de garantia. Só deposita décimas e terceiras expectativas. Cria um vínculo, sim, cria um vínculo, mas que às vezes se desfaz com avisos prévios de apenas trinta dias. Que são cantados em voz muito baixa e cheia de lágrimas enquanto se toma banho para limpar a sujeira dos pensamentos. Devo rebobinar, em silêncio, a fita dessa história sem final feliz.

quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Eco [30]


Uma semana antes, Laura me convencia a fazer snorkeling pela primeira vez. Vem, ela disse. Não tens curiosidade? Vai ser bom. Eu não queria descer da lancha, mas fui impelido de vontade pela força motriz da língua dela movendo o convite molhado entre os dentes. Sob pretextos sanitários, não nos deram o tubo de encaixar na boca - apenas os óculos. Resisti ao medo de me afogar e fui. Não nado bem, só bóio e mal. E não me é intuitivo o conjunto desses comandos coordenados: esqueça que tem um nariz, levante e desça quando os pulmões exigirem e permitirem, mantenha os olhos bem abertos e curiosos. Ainda assim, ou talvez por isso, o desconhecido de qualquer profundeza viva abaixo do nível do mar é pra mim uma das coisas mais bonitas de todas da natureza. Os peixes, que zanzam onde quiserem. As estrelas, que coincidem e conectam no mar um céu. Os recifes, que azulam-esverdeiam e translucidam a água. O calor tropical incidindo sobre as outras coisas. Já que a isso eu me dispus, queria ver conhecer tudo ao máximo, explorar me deter compreender ter clareza. Mergulhar a fronte da cabeça, com a água na altura do meu peito, pra deixar a visão inteiramente atenta. Ver os pés. Perto deles, uma fauna. Eu achei que usar um snorkel fosse assim, mas pra mim não foi exatamente. Além do controle da respiração, é necessária uma procura ostensiva. Uma atenção demasiado detida. Um vencer o medo da água salgada - que é tanta - entrar pra cegar as lentes de contato. Uma certa proximidade do desconhecido. E uma sorte se houver encontro e ele for agradável. Eu queria ter só clareza, mas acabou que pra mim foi tudo meio turvo, bom, mas turvo. Enxerguei só duas estrelas: fincadas no fundo da areia, numa distância aquática cúbica uma da outra. Distantes, mas ainda iguais. Como se tratadas por taxidermia. Embaixo d'água, em intervalos de poucos segundos a cada submersão para tomar ar, eu me perguntei como se movimentariam e para onde. Com que velocidade. Como acasalariam e se reproduziriam. Sobretudo como e se durariam paradas no mesmo lugar de sempre. E como eu não pisaria em nenhuma, se quisesse caminhar para honrar os meus caprichos? Respirei fundo, depois, e fiz poema:

Depois de um mar,
secamos.
Mantivemos secos
porque um pouco loucos
quase todo o tempo
Esses dois de nós
lavando tudo a limpo
Que de um lado dizem: não não não
por isso isso e isso
E do outro dizem: pensa pensa pensa,
meu bem,
na chance disso disso e disso.

Tateando com os pés
uma praticidade inventada
De já se supor mais racional
- pronto e claro -
do que se está
Neste exato momento,
em que tudo ainda é
tão 
d o l o r o s a m e n t e
turvo.

Depois o abraço
a barba que cresceu calculada
o pescoço
os narizes
o hálito
os encaixes
e as mãos
em proximidade finalmente visceral,
bronzeadamente coordenada
e assombrosamente latina.

Uma concha quente
um pouco apaziguados
relembrando antes do furacão
- e emprestando,
para esta espécie de cura,
ainda que com novos cheiros
o mesmo conhecido calor do corpo
Que há de ser sempre o mesmo corpo
Que um dia escolheu ser só do outro

Depois sujamos mais dessa água que nos rodeia
ao nos atravessarmos
ainda sangrando
- em corpo, dor e dúvida -
Nessa vontade de ver:
através
o que virá
Nessa necessidade de respirar:
o ar de deixar vivo
só não sei quando
Depois?

segunda-feira, 12 de agosto de 2024

Imperdoável

Sinto mais esse impulso cruel de abraçar o teu corpo quente enquanto dormes e sei que o meu coração vai explodir se eu não fizer isso nunca mais. Me perdoa. Queria precipitar as pontas dos dedos com as unhas roídas e o esmalte claro e gasto no teu cabelo cortado mesmo tendo prometido que se você aceitasse dormir na cama eu não chegaria perto pra você descansar. Me perdoa. Queria colar o teu coração peça por peça com a minha saliva e as minhas lágrimas para que estivesse novo amanhã de manhã. Me perdoa. Eu tenho a impressão de que tudo que há pra ser dito já foi compreendido e ainda assim gostaria de te acordar sacudindo agora mesmo, aos prantos, pra implorar que me ouça mais uma vez, de novo do zero, pra quem sabe o resultado mude. Me perdoa. Joguei o macio de nós pela janela abaixo e só sobrou o áspero e os cacos de vidro pra amontoar sem proteção ao longo da semana. Me perdoa. Nenhuma autópsia alcança a morte da minha moral dura. Me perdoa. A tua bondade gigante derreteu inteira no fogo inconsequente do meu narcisismo. Me perdoa. Desejo sofrer todos os juramentos quebrados pelos dois para que não endureças por uma culpa não tida. Me perdoa. Não há nada que eu diga capaz de justificar o sangue e a pólvora que agora se impregnam nas minhas mãos que mataram nossos planos mais bonitos. Me perdoa. Nenhuma cirurgia vai ser capaz de remover a minha expansividade contrastando com a tua introspecção, mas se eu pudesse, eu transplantava pra mim esse teu encolhimento de depois das explicações que nos exigirão. Me perdoa. Tenho raiva de mim pelo teu comportamento ser tão íntegro e eu não ter continuado a carregar ele com todas as faixas de cuidado frágil, depois derrubado e tropeçado nele com os sapatos de salto. Me perdoa. Estou rasgada de cima a baixo em tiras muito finas e ainda parecem cortes pequenos perto do que seria justo que eu estivesse sentindo. Me perdoa. Nublei um furacão em cima das nossas cabeças e ele tocou o continente chegando nessa tarde de inverno. Me perdoa. Tranquei a porta desse dilema e atirei a chave aos porcos, no lixo, no lodo. Me perdoa. Você prometeu a escolha mais consciente e eu não mereci. Me perdoa. Eu te fiz supor que levei sempre com a barriga. Me perdoa. Eu tardei, falhei, escondi. Faz isso por ti, por mim, pelo que costumávamos ser: não, não me perdoa.

quarta-feira, 31 de julho de 2024

Matrioska

A decisão certa
Se esconde num túnel
Que se estreita
Por dentro das erradas.

Só encontra quem se esgueira
e se dispõe
A atravessar sem saber de qual deles vai sair.

terça-feira, 30 de julho de 2024

Eco [29]


Quando uma relação tem fim, não se perde automaticamente o amor - perdem-se as piadas internas, a certeza de persistir o encanto mútuo, confissões de admiração e reconhecimentos, a decisão coordenada sobre cumprimentar ou atravessar a rua, todos os rituais de doçura e conforto inventados a dois, as senhas de acesso a estes rituais, todas as servidões de passagem aos traumas, às dores, às reinvenções e encaixes nas faltas mais encravadas e o direito irrestrito aos contatos e provocações aleatórias no meio do dia. São grosseiramente arrancados os selos de qualidade pelos quais tudo que passasse pelo filtro do outro tinha a graça de um interesse e, enfim, removidas as placas de patrimônio que antes pareciam pirografadas na pele. O que parece, gradualmente, dar quase na mesma - porque é disso que se alimentava o amor. Quando uma relação tem fim, ficam apenas as marcas. Da cola e do resto.
Quando Laura foi embora eu ainda sentia a presença vultuosa dela enquanto voltava, teimoso, a mergulhar nos meus oceanos escritos de caos, como um explorador, com muita dificuldade de abrir os olhos. Queria ter podido entender junto com ela o que prendia meu pé nos corais desse mar de identificação - imenso e nosso - ao qual ela de repente foi capaz de atear fogo. O poeta me ensinou: Confia no teu coração se os mares pegarem fogo. Não ensinou, porém, o que fazer com a dificuldade de confiar em mim e no meu coração sozinho e de novo. Laura dividia tão, tão, tão bem comigo a nossa profundidade. Parecíamos estabelecer uma transfusão do mesmo ar - que passava de um pulmão a outro em beijos virtualmente submersos, sem que nunca precisássemos tomar o fôlego da superfície.
Precisei me convencer de que, no fim, eu saberia o que fazer - mesmo que todo o meu aparelho respiratório estivesse desacostumado a funcionar com naturalidade e a minha mandíbula tensa tivesse desaprendido a mastigar, falar e sorrir. Se a apneia fosse uma modalidade olímpica, haveria para mim um prêmio de consolação. Destinado a quem falhou mas desejava sobreviver sem precisar do oxigênio das praticidades rasas. E depois arcou com todos os danos dessa privação no cérebro.
Um eco solitário, uma bolha que se propaga na água na certeza de não haver resposta: é a minha própria voz que volta. Sem que ninguém a tenha absorvido do outro lado.

segunda-feira, 29 de julho de 2024

Barro e pó

¿Que hay en una estrella?
Nosotros mismos.
Todos los elementos de nuestro cuerpo
y del planeta
estuvieron en las entrañas
de una estrella.
Somos polvo de estrellas.
(Ernesto Cardenal)


Por que os tijolos e as telhas não se desfazem ao nosso redor ou em cima das nossas cabeças, se são feitos de barro? Não quero pensar em Química. Não importa agora. Eu sei, eu sei, temperaturas altíssimas asseguram que a argila, expandida, fique duramente unida sem perigo de que se despedace e espalhe. Mas então que baita azar o meu ter sido feita com esse pouco de frieza de vez em quando. Desintegrada, agora preciso dar conta de me varrer cada caco até que fique limpa. Já não sou a mesma que horas atrás se esfacelava. Essa chuva me amolece em lágrima para me lavar em pequenas partes - enquanto o sol promete que só vai me secar de novo se estiver minimamente reunida. Eu, que nunca tive talento ou habilidades manuais, vou precisar dar conta de me recompor. Primeiro o contorno de mim. Faço planos de me rechear dessa matéria e consistência que espalhei. Vou precisar conseguir me remoldar de cabeça, pedaço a pedaço, à minha imagem e semelhança, os mínimos detalhes. A poeira de mim que se perdeu na queda há de achar as frestas para dar liga à obra (re)feita - como nuvem - que deságua, faz crescer, transpira e ainda há pouco se precipitou. Eu só queria ser de novo inteira sem ter que dar o tempo ao tempo de esquecer cada parte que brilhava como glitter. Agora emboto - eu - cor de terra, como o pó. E lambo a ponta dos meus dedos ensaiando como virarei esta página só pra tentar me grudar a mim de novo.

Já não inspiro ou cedo aos mais profundos pedidos: cada partícula jaz torta no chão sem se lembrar que já foi uma promessa de cadência.