Bem-vindos a um tour pelo Caulabouço da mansão da minha caubeça. Uma vez ao mês ou mais, abrimos visitas guiadas até este subterrâneo sujo e escuro onde se ocultam Traumas-Ojerizas-Paranoias-e-Medos da pior espécie
para espiar como se comportam,
expiar os que se comportam e
alimentar com mão amiga todos os outros pelas frestas estreitas que se abrem horizontais até detrás das portas de ferro cerradas deste corredor extenso, enegrecido por paredes de pedra e limo.
Atrás destas grades estão personagens quase mitológicos, cujas estórias excêntricas de seus nascimentos são repetidas à exaustão, quase sempre por meio de anedotas, nos encontros festivos e outros nem tanto promovidos nos salões iluminados da superfície do Caustelo - tanto, até ganharem contornos muito duros, adicionando-lhes supostos poderes mágicos, sobrenaturais, tirânicos, por vezes muito diferentes do que possam ter sido em sua forma original.
Daí a importância das visitas periódicas: para enxergá-los de novo olhos nos olhos, frente a frente, no que tiverem de real. Encontrá-los in persona tira da narrativa o poder de incitar o ódio ou o escárnio pelo que nem são, pelo que nem foram, ou por aquilo que somente se tornaram por terem sido trancados neste porão. Mas descer as escaudas e permitir visitação de tempos em tempos também pode fomentar um abolicionismo penal às avessas. Às vezes vê-los tão de perto acaba fazendo concordar mais com a medida drástica de aprisioná-los para que não circulem livremente à luz do dia.
Certamente a mais emblemática entre eles é a Fantasma da Franja Curta, também chamada simplesmente de A Moderna. Pode ser vista a qualquer hora do dia ou da noite, sempre causando uma espécie de assombro. Foi uma das que chegou por último. É a única que não tem endereço definido entre as celas - porque vaga diáfana, etérea, capaz de atravessar todo o cáurcere incitando rebeldias variadas dos outros detentos, lembrando-lhes que têm fome, por exemplo. Usa coturnos ou tênis pretos nos pés, embora nunca toque o chão com eles. Muda de forma conforme lhe convém, mas na maior parte do tempo tem cabelos de um ruivo pálido, a pele clara, tatuagens grossas de beleza e cadeia, entende de rock oitentista e nunca se importou com o que pensariam do que estivesse vestindo, postando ou em quem estivesse votando. Foi ela a idealizadora e coordenadora do Grande Motim de 2018, no qual todos os presos saíram para uma animada e afrontosa dança das cadeiras e, depois, acomodaram-se em outras posições que não as de costume.
A Fantasma da Franja Curta passa sempre mostrando a língua para provocar outro perigoso morador do Caulabouço: o Classe Média Típico, trancado aqui pelo simples fato de viver, ambicionar e verbalizar tudo conforme um estilo de vida batizado com nome de cidade. Sim, ela mesma. Balneário Camboriú. O Classe Média Típico assume forma humanóide, embora certamente não seja um humano completo. Adora churras, odeia corrupção, inveja e falsidade, seu partido é o Brasil, sua mulher era bem loura mas o abandonou quando eu o aprisionei para logo se casar com outro figurão. Ressente-se porque precisa dividir a cela pequena com seu carro importado, que ele lustra todos os dias enquanto reclama de não poder mais fazer rachas pelos corredores, parte do castigo que lhe condena a refletir sobre suas prioridades. Na última visita foi necessário revestir as paredes ao redor de sua porta com avisos ultraespecíficos para que as visitas não o alimentassem com pomadas ou secadores de cabelo que lhe deixavam igual ao Johnny Bravo. E nem com jacarezinhos da Lacoste, que ele também aprecia muito.
Na segunda cela do corredor à direita descansa impávida a Dúvida de Ser ou Não Ser Mãe, uma criatura diminuta e adiadora por excelência que, pelo que conta a lenda, vai viver 100 anos, mas também pode sumir inadvertidamente. Sua história fica pra outro dia.
É hora de caudear os portões de Alcautraz: uma Azkauban toda minha, feita de loucos sussurros e uivos, nojos, perigos e repressões. Frio. Tédio. Amargura. Insistência. Repulsa. E força bruta.